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Jorge Andrade: Quero que cada espectáculo cause um curto-circuito no quotidiano

O actor e encenador Jorge Andrade, fundador do grupo Mala Voadora, encara cada espectáculo seu como uma espécie de ovni que aterra na varanda ou no quintal e que atrapalha o quotidiano. O último deles chama-se “Amazónia”, é politicamente pouco correcto, e está no São Luiz Teatro Municipal até dia 19 de Novembro.

Miguel Baltazar
17 de Novembro de 2017 às 14:00
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Jorge Andrade nasceu em Moçambique e veio para Portugal aos quatro anos. Viveu com os pais na Quinta do Balteiro, no Vale do Jamor, e depois morou perto de Carcavelos até aos 17 anos. Em Moçambique, ficou a sua tia Eulália e o marido, donos de uma fábrica de concentrado de tomate. Queriam por tudo que o sobrinho, o Jorginho, fosse tomar conta do negócio. Ele não foi, mas imaginou que tinha ido. E a partir dessa ideia reinventou uma vida para ele e para o país. Assim nasceu o espectáculo "Moçambique", dirigido pelo actor e encenador que fundou a companhia Mala Voadora, há 15 anos, com o cenógrafo José Capela. A partir de "Moçambique", nasceu outro espectáculo. Chama-se "Amazónia", apresenta-se como uma "telenovela ecológica" e tudo ali é reciclado: ideias, actores e cenários. Está no São Luiz Teatro Municipal até dia 19 de Novembro.


O espectáculo "Amazónia" parte do lugar de onde ficámos na peça "Moçambique", que surgiu a partir da minha história pessoal. Nasci em Maputo, na altura ainda se chamava Lourenço Marques. Os meus pais tiveram uma vida complicada, os meus dois primeiros irmãos morreram, a minha irmã morreu à nascença, o meu irmão morreu com um ano, só depois nasceu o meu actual irmão e por fim nasci eu. Em 1977, regressámos a Portugal e, da família, só ficou por lá a viver a minha tia Eulália, com o marido e os dois filhos. Em 1983, um dos meus primos morreu de malária e, passados seis meses, o irmão dele também morreu, num acidente de mota. Os meus tios perderam os dois filhos. Um dia, vieram a Portugal, ainda eu era miúdo, e a minha tia disse à minha mãe: "Ai, Armanda, tens dois filhos, eu fiquei sem nenhum, podias dar-me um." Elas estavam na cozinha, eu estava na salita e ouvi a conversa.

Os meus tios tinham uma grande plantação de tomate e uma fábrica de concentrado, trabalharam muito e proporcionaram aos meus primos um começo de vida mais confortável do que aquele que eles tinham tido. Entretanto, todo o seu propósito estava a perder-se, daí terem pedido à minha mãe que lhes desse um filho, mas eu ouvi-a responder: "Ai, Eulália, dava-te o Jorginho, mas não consigo viver sem ele."

Passados muitos anos, em 2010, fui a Moçambique dar um "workshop" de teatro, o meu tio foi buscar-me a Maputo para eu ir passar um fim-de-semana com eles e voltou a perguntar-me se eu não queria ficar lá a viver. Quase 30 anos depois, eles ainda tinham esta ideia! Na altura, eu já teria uns 37 anos. E respondi: "Mas, ó tio, a minha vida é teatro, não percebo nada de tomate." Ele insistia. E eu dizia que não e que não.

Regressei a Portugal e pensei: vou fazer um espectáculo sobre o que teria sido a minha vida se os meus pais me tivessem dado aos meus tios em 1984 e, já que ia reescrever a minha história, queria ocupar um lugar importante na própria história de Moçambique, queria ter a minha cara em selos e notas!

Tinha a ideia de fazer uma espécie de residência artística no país, de ficar a viver com a minha tia uns três meses e transformar esses três meses em 30 anos de vida. Mas em 2014 o meu tio morreu assassinado junto à fábrica de concentrado, a minha tia voltou a insistir para eu tomar conta do negócio, eu a dizer que não, ela a telefonar diariamente. Achei então que aquela não seria a altura certa para fazer o espectáculo, não queria ir a Moçambique numa atitude algo vampiresca, ainda que artística, que poderia dar falsas esperanças à minha tia.

O projecto ficou na gaveta e há cerca de dois anos avancei com o espectáculo. Ao refazer a minha história, iria refazer a história de Moçambique, sabendo à partida que iria apenas confirmar a impotência do indivíduo perante uma história que não se cinge àquela realidade nacional. O país foi uma espécie de peão na Guerra Fria.

No espectáculo, dedicávamo-nos ao negócio do tomate, mas estávamos no meio de uma contingência universal e até nos envolvíamos no processo de paz para tentar levar avante o nosso negócio e, sempre que a nossa história ficcional apresentava incongruências, voltávamos atrás para tentar corrigi-la como que demonstrando que, na realidade, isso não era possível, que a história é vivida de uma maneira que não é possível ser reescrita, a não ser fazendo leituras diferentes, mas os factos continuam a ser os mesmos.

Finalmente, depois de manipular muito a história ficcional, aconteceu uma catástrofe ecológica, Moçambique viveu uma das piores secas de que há memória, e ali em palco dizíamos uns para os outros: "Desistimos, vamos para uma ilha paradisíaca beber cerveja e apanhar sol. Porque, numa hora e um quarto, não dá para mudar a história de um país." E o espectáculo acabava assim - connosco à procura de um final feliz. E só o encontrávamos na tal ilha paradisíaca que, no fundo, era uma fuga que só a arte pode dar.

A minha mãe ainda não viu a peça porque o espectáculo tem uma parte agridoce. Quando lhe contei que ia fazer este trabalho a partir da conversa que ela tinha tido com a minha tia, a minha mãe começou a chorar e pediu-me desculpa. Na verdade, ela disse que me dava aos meus tios. E tentou provar-mo: "A tua avó até me queria bater e dizia que um filho não se dá. Mas eu tinha ali a minha irmã, ela tinha perdido dois filhos, eu tinha perdido dois filhos, ela não tinha nenhum, eu não conseguia dizer que não, e ela a chorar, a chorar, mas felizmente foi-se embora sem falar mais no assunto e eu dei graças a Deus." Eu insisti: "Não, mãe, eu lembro-me de tu dizeres à tia que não." Provavelmente, eu ouvi aquilo que queria ouvir.

Ao estudar a História de Moçambique, surpreendeu-me sobretudo a minha ignorância. Os meus pais foram para lá muito novos - a minha mãe era da ilha da Madeira e o meu pai era de uma terreola perto da fronteira com a Galiza. Eles eram produtores de arroz e criavam gado, cresceram lá, conheceram-se lá e casaram lá. Mas em minha casa não se falava muito desse período antes da independência, nem da guerra colonial. Eu vim para Portugal com quatro anos e não tenho muitas memórias de Moçambique, tirando a minha mãe a matar uma cobra e a comer pão com água gelada e açúcar.

Quando chegámos a Portugal, ficámos na Quinta do Balteiro, no Vale do Jamor. Os meus pais começaram a trabalhar logo no refeitório que dava comida àquela gente toda. Uns anos depois, deram-nos umas casas melhores ao pé de Carcavelos e a vida foi seguindo.

No liceu, eu já procurava fazer trabalhos de grupo em estilo de performance, depois comecei a organizar festas na escola onde fazíamos alguns "sketches" e fiz parte de um grupo de teatro amador, o grupo Miragem, em Matos-Cheirinhos, que tinha uma companhia profissional a acompanhá-lo, a Mandrágora, que me convidou para me integrar o grupo deles. Depois fui um ano para os Estados Unidos viver com uma família, no sistema de intercâmbio American Field Service (AFS). Fiz o 12.º ano em Connecticut, entrei no teatro da escola e fiz o musical "No, No, A Million Times No!" (risos).

Quando voltei a Portugal, estava decidido a ir para o Conservatório, desfazendo o sonho que o meu pai tinha idealizado para mim, o de ser médico ou assim. Insisti, fiz as provas, mas não entrei, o que foi uma grande frustração e uma grande vergonha. Fiquei um ano no Chapitô, voltei a fazer as provas e entrei.

No primeiro ano do Conservatório, fiz uma figuração no Teatro Nacional D. Maria II, a coisa não correu muito bem, e depois tive um convite do Teatro da Garagem, onde fiquei uns oito anos. A experiência esgotou-se naturalmente e eu fui fazendo alguns espectáculos aqui e ali, nomeadamente com os Artistas Unidos, e depois comecei a pensar no meu próprio projecto. É então que aparece a Mala Voadora, há 15 anos. O primeiro espectáculo foi a trilogia de Strindberg e convidei o encenador Rogério de Carvalho. Depois convidei o João Mota para encenar "Zoo Story". Mais tarde, comecei eu a encenar.

Como dizia no início, o espectáculo "Moçambique" acaba com aquela catástrofe, e então decidimos fazer um espectáculo ecológico. A Amazónia, aqui, aparece como uma espécie de cliché - o mundo interessa-se, é urgente, é ético. Apresentamo-nos como uns artistas de vanguarda que querem fazer uma telenovela ecológica e, para tal, contam com o apoio da Fundação Cartier. É um espectáculo politicamente muito pouco correcto. Existem, na peça, três planos que se vão misturando: o dos artistas que vão para a Amazónia fazer uma telenovela ecológica e por esse facto acabam também por destruir parte da Amazónia; existe o argumento da telenovela propriamente dita, com uma família que foi viver para lá e, como convém numa telenovela, existem os maus, e estes são todos maus; e os próprios artistas também se confundem com os grandes empreendimentos feitos ao longo da história na própria Amazónia. Vamos partilhando com o público a confusão que se gera nestes três planos e pretendemos potenciar essa confusão de maneira a criar um campo mais especulativo, que possa destruir qualquer ideia de narrativa e encontrar uma outra forma de olhar, além da lógica como a entendemos. Procuramos criar uma espécie de delírio e ver qual o nosso lugar neste caos.

Não queremos dar respostas, o teatro não serve para dar lições de moral. Quando muito, serve para partilhar um momento mais colectivo que nos leva a olhar à volta de uma maneira mais singular. Gostava que cada um dos espectáculos da Mala Voadora fosse uma espécie de ovni que aterra na varanda ou no quintal e que nos atrapalha no quotidiano ou que nos leva a olhar para algo de uma maneira diferente. Ou a sorrir ou a barafustar. Quero que cada espectáculo cause um curto-circuito numa regra muito pragmática do quotidiano. 


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