Notícia
Deixa a chave (e vai-te embora)
Quando uma das pessoas que mais amamos se transforma num estranho, o que nos resta? Nesta noite, acabou-se a margem para perdoar, para aceitar. A enxurrada de palavras mostra as fracturas numa zona de conforto chamada família.
Um bloco de betão cinzento localiza a história. O lado bruto, despido, da arquitectura antecipa o que aí vem. Mesa posta: pratos e copos cheios para um jantar simultaneamente banal e "comemorativo". Sem aviso, pela porta, entra quem mudará toda esta noite.
Liam (Romeu Costa) tem a camisola suja de sangue. Silêncio. Depois, um ritmo vertiginoso de palavras que se cortam, entrecortam, confundem. Não há frases completas até ao fim, abunda o monossílabo, regressa-se para terminar o que ficou por dizer. É a linguagem do quotidiano em palco. O jantar da irmã Helen (Isabel Abreu) e do cunhado Danny (Tonan Quito) está arruinado.
O que mais interessará descobrir, além da origem do sangue, é como numa única noite este quadro de família enquanto refúgio se desfaz. À medida que a história se vai (re)contando, as relações entre as personagens tornam-se mais densas e desconfortáveis. Liam e Helen são os "Órfãos" da peça do britânico Dennis Kelly. Os laços familiares, que nunca parecem saudáveis, vão como que apodrecendo com o desenvolver da narrativa. É um percurso de oportunidades perdidas, de dependências levadas ao extremo, de perdões acumulados.
Quando se descobre a verdadeira origem do sangue, afinal é ele que muda tudo, a peça coloca em cima da mesa uma reflexão sobre o preconceito e o olhar face ao outro, ao estrangeiro, tão actual hoje como na altura em que a peça foi escrita, em 2009. "Eu só queria assustá-lo", justifica-se Liam. O susto transformou-se em tortura. Não apenas para a vítima, para todos.
"Órfãos" parece ter todos os ingredientes para agarrar mas, ainda assim, nesta encenação de Tiago Guedes, falta algo. É difícil explicar o quê, porque as escolhas são todas bastante compreensíveis do ponto de vista formal. O sentimento é de que se anda à volta do mesmo sem se avançar, mesmo que a história se vá desenvolvendo a partir desse mesmo mecanismo.
Os actores surgem como telas neutras, diríamos quase desprovidos de emoções, para que não seja possível ao público tomar partido. Nesse afastamento, o olhar para o palco também é feito de desconforto. O riso, amiúde, comprova-o. Há um certo medo - conceito que é caro à peça - de que aquela família pudesse ser também a nossa, porque de forma fiel à realidade ela se apresenta.
"Órfãos" é, talvez, cansativa por isso. Por esse confronto permanente, pelo jogo de palavras, pelas revelações que, de facto, nunca o são. Nesta noite, tudo o que interessa é proteger a família da ameaça do outro. E quando esse outro está dentro da nossa família?
Liam (Romeu Costa) tem a camisola suja de sangue. Silêncio. Depois, um ritmo vertiginoso de palavras que se cortam, entrecortam, confundem. Não há frases completas até ao fim, abunda o monossílabo, regressa-se para terminar o que ficou por dizer. É a linguagem do quotidiano em palco. O jantar da irmã Helen (Isabel Abreu) e do cunhado Danny (Tonan Quito) está arruinado.
Quando se descobre a verdadeira origem do sangue, afinal é ele que muda tudo, a peça coloca em cima da mesa uma reflexão sobre o preconceito e o olhar face ao outro, ao estrangeiro, tão actual hoje como na altura em que a peça foi escrita, em 2009. "Eu só queria assustá-lo", justifica-se Liam. O susto transformou-se em tortura. Não apenas para a vítima, para todos.
"Órfãos" parece ter todos os ingredientes para agarrar mas, ainda assim, nesta encenação de Tiago Guedes, falta algo. É difícil explicar o quê, porque as escolhas são todas bastante compreensíveis do ponto de vista formal. O sentimento é de que se anda à volta do mesmo sem se avançar, mesmo que a história se vá desenvolvendo a partir desse mesmo mecanismo.
Os actores surgem como telas neutras, diríamos quase desprovidos de emoções, para que não seja possível ao público tomar partido. Nesse afastamento, o olhar para o palco também é feito de desconforto. O riso, amiúde, comprova-o. Há um certo medo - conceito que é caro à peça - de que aquela família pudesse ser também a nossa, porque de forma fiel à realidade ela se apresenta.
"Órfãos" é, talvez, cansativa por isso. Por esse confronto permanente, pelo jogo de palavras, pelas revelações que, de facto, nunca o são. Nesta noite, tudo o que interessa é proteger a família da ameaça do outro. E quando esse outro está dentro da nossa família?