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Raquel Castro: Trabalhas o ano inteiro, para ires gastar tudo num mês

“Olhar de Milhões” é a primeira criação de Raquel Castro para palco em que dirige outros intérpretes. Vai estar este fim-de-semana no Teatro Carlos Alberto, no Porto, e, para a semana, no Teatro Maria Matos, em Lisboa.

Miguel Baltazar
30 de Novembro de 2017 às 14:00
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A actriz e encenadora Raquel Castro vai estar este fim-de-semana no Teatro Carlos Alberto, no Porto, e, para a semana, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, com "Olhar de Milhões". É quase o final de uma digressão por todo o país, através da rede de teatros 5 Sentidos.

É um convite para embarcar num cruzeiro e mergulhar num mundo de entretenimento que talvez um dia seja uma anacronia. É um espectáculo feito para um mundo que desaprendeu o aborrecimento e desaprendeu de ensinar o aborrecimento aos filhos. É a primeira criação de Raquel Castro para palco em que dirige outros intérpretes, desde que se estreou no Maria Matos com um solo, onde registava o primeiro ano de vida da sua primeira filha e enviava, como só a criação pode fazer, uma mensagem para o futuro.


1. Gosto de sentir a criação como um espaço de liberdade. Um espaço sem amarras, onde posso começar uma coisa e pensar que ela pode ser o que eu quiser. Gosto de pensar na criação como um lugar onde posso viver de determinada maneira com algumas pessoas durante alguns meses. É quase como criar o nosso próprio espaço de vida.

Este projecto [Olhar de Milhões] teve essa felicidade e mais um bebé. Teve também essa fase da vida mais terna.

A minha filha tinha quatro meses e tal quando começámos o processo mais intenso de ensaios. Foi muito duro. Eu estava a amamentar e achei que não ia ser possível. Que não ia conseguir lidar com os ensaios e o trabalho de criação e ter um bebé a precisar de mim, a chorar, com os seus tempos, diferentes dos tempos do trabalho. Comecei por tentar gerir a situação no dia-a-dia e acabei por levá-la praticamente todos os dias para os ensaios, e depois, também com a desculpa da amamentação, para a digressão que estamos a fazer agora.


Devia ser possível, em todo o lado, levarmos connosco os nossos bebés.


Sabia que me iam tirar uma fotografia [para esta entrevista] e pensei trazer a minha filha para ser fotografada com ela. Apesar de não gostar da ideia de expor as minhas filhas, achei que podia ser quase um manifesto: ser artista e tirar um retrato com um bebé.

Normalmente, são mundos que estão separados e nem sempre é compreendido quando se cruza a fronteira. Levar uma bebé para os ensaios e levá-la em digressão implica toda uma logística - mas acho que é o básico. Devia ser possível, em todo o lado, levarmos connosco os nossos bebés.

2. Normalmente, quando começo a pensar num trabalho novo, não tenho uma ideia pré-concebida do que vai ser o espectáculo. Há um ponto de partida: pode ser um tema, pode ser uma pergunta, pode ser uma leitura de um texto ou uma inquietação; e começo a desbravar caminho à volta.

Esta peça começou assim. Durante muito tempo, debrucei-me sobre a palavra entretenimento. E, daí, parti para vários sub-temas: a velocidade a que vivemos, o excesso de estímulos a que estamos expostos com a informação a que temos acesso, o facto de facilmente estarmos conectados a outro lugar que não o sítio onde estamos, o aborrecimento e a dificuldade em lidar com o aborrecimento. No fundo, a ideia era pesquisar sobre esse infinito que está à nossa volta e que faz parte da nossa vida de hoje.

Acabámos por nos focar no conceito de um grupo de cinco pessoas que estavam num espaço onde havia uma espécie de salas de prazeres: onde tudo era possível. As pessoas saíam, voltavam e narravam o que tinham feito nessas salas. Os intérpretes improvisaram bastante sobre isso. Pensámos na experiência do "resort", onde cabe essa ideia de que trabalhas, trabalhas, trabalhas o ano inteiro, para depois ires gastar tudo num mês, e nesse mês podes ser mimado ao máximo e cometer todas as loucuras. E, finalmente, pensámos num sítio isolado: um cruzeiro. E depois pensámos: e se eles viessem do futuro para fazer um cruzeiro, mas é um cruzeiro do passado, como é, para nós, uma feira medieval?

3. Nunca quis ser actriz. Nunca tinha pensado nisso. A minha vontade de ser actriz nasceu de uma forma um bocado circunstancial, até repentinamente, por ter visto uma ou outra peça de teatro e ficar curiosa. Pensei que queria fazer um curso de teatro para perceber como é que se fazia.

Foi mais ou menos na altura em que fui para a faculdade estudar enfermagem que comecei a fazer teatro. Acabei o curso e trabalhei ainda três anos como enfermeira. Enquanto trabalhava fazia o Conservatório [de Teatro]. Acabei por desistir de enfermagem porque já não aguentava fazer as duas coisas, não conseguia estar em dois sítios ao mesmo tempo.


Acredito que se pode mudar a vida das pessoas numa sala de teatro.


Às vezes, penso como teria sido a minha vida se tivesse continuado a trabalhar como enfermeira. Acho que teria sido uma vida boa também. Eu não era uma enfermeira muito típica, generalista, de hospital. Trabalhava em saúde mental, no Júlio de Matos. É uma profissão muito desgastante e a área da saúde mental é muito difícil, porque é uma área muito abandonada, muito esquecida, muito atrasada no tempo, e para um pessoa nova com vontade de mudar o mundo - como têm as pessoas novas - era muito frustrante. Mas o trabalho como enfermeira tem também o lado de nos fazer sentir mesmo úteis. Chega-se ao fim do dia e sente-se que se contribuiu para o bem-estar de alguém, pensa-se: que bom.

Acho que se tivesse continuado a ser enfermeira teria acabado por fazer projectos mais ligados à arte e terapia ou à saúde comunitária.

Ainda me interessa esse trabalho. Não descuro a possibilidade de fazer mais teatro comunitário. Aí, há um contacto muito directo com as pessoas e sente-se que se pode mesmo mudar a vida das pessoas. Sente-se na pele: isto fez com que esta pessoa saísse de casa, fosse procurar um trabalho, ou fosse feliz, neste instante, nestes 20 minutos em que estivemos aqui com ela a fazer esta peça.

Quando se faz teatro numa sala para não sei quantos desconhecidos, não se tem essa sensação. Embora eu acredite que isso possa acontecer: que se pode mudar a vida das pessoas numa sala de teatro.

4. A minha primeira peça partiu de um projecto autobiográfico. Nessa altura, gostava muito de artistas que trabalhavam a biografia e que faziam performance - e gosto muito ainda.

A peça partia de um vídeo que fiz, durante um ano, para a Mónica, a minha primeira filha. Todos os dias, fazia um registo para depois ela ver, um dia mais tarde. Depois, transportei isso para o palco e o espectáculo, basicamente, é um vídeo feito ao vivo para ela ver quando for grande.

É um espectáculo pelo qual tenho muito carinho. E foi um espectáculo em relação ao qual tive imensas reacções. Recebi mensagens de pessoas que não conhecia. Era um espectáculo em que era difícil o espectador não se identificar, porque mesmo que nem todos sejamos pais, somos todos filhos ou já fomos filhos.

Eu estava a fazer o espectáculo para ela. Havia um público a volta, mas era assumido que o espectáculo era para ela. Então, era um acto muito natural e aproximava as pessoas.


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