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Alice, Minha Irmã Alice

Os poemas de Alice Vieira contam, em palco, a sua história de vida. "Toda a cidade ardia" muda-lhe o nome, mas mantém-se fiel ao seu percurso. Cidades, revoluções, palavras. E o relógio que avança num sentido inesperado.

Toda a cidade ardia - A segunda temporada da peça encenada por Marta Dias está no teatro aberto, em lisboa, até 29 de outubro.
14 de Outubro de 2017 às 11:15
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Há poemas que se confundem com a vida de quem os escreve. E há peças de teatro que os contam a ambos, aos poemas e à vida, em perspectiva. É assim em "Toda a cidade ardia", agora no Teatro Aberto, em Lisboa.

A protagonista é a escritora e jornalista Alice Vieira, embora a peça lhe mude o nome para tornar a sua história mais universal, transformando-a numa espécie de exemplo neutro mas, ainda assim, inspirador.

Marta Dias, que assume a encenação, foi beber a obras como "Dois Corpos Tombando na Água", "O Que Dói às Aves" ou "Armários da Noite" para construir um texto que é, em si mesmo, o poético resultado de uma vontade antiga. As palavras são embrulhadas com cuidado na construção de cada cena e, mesmo com o aparato cenográfico por vezes ruidoso, nunca perdem a sua centralidade.

O registo é cronológico - da infância aos dias de hoje - para que a compreensão seja mais fácil. Ana, a personagem principal, é dividida em duas, entre Ana Guiomar e Sílvia Filipe, ficando sempre uma delas como um narrador, como alguém que vê a sua própria história à distância.

"Toda a cidade ardia" peca, talvez, pela demora e por alguns quadros que se tornam repetitivos nas intenções que transmitem. Não fossem as duas revoluções retratadas - elas próprias fortes rasgos na sequência narrativa - e as duas horas e meia de peça poderiam mostrar-se cansativas.

O título fala de uma cidade. Não é a Lisboa que marca grande parte da história, avise-se. É Paris, onde Ana - ou Alice, sabemos ser o mesmo - vive o Maio de 1968 e a forma como esses dias marcam o futuro. "Só as acções são revolucionárias", ouve-se. Uma história de amor - representada entre os actores Ana Guiomar e Vítor D'Andrade - quebra-se na capital francesa. O regresso às origens torna-se inevitável.

Segue-se a rotina das redacções e dos jornais marcados pela censura - brilhantemente representada por umas gigantes luvas azuis - e, como esperada, a noite da revolução, conhecida através de um telefonema. Depois, em cena, os cravos são literalmente varridos. E tudo entra no registo do lar.

O marido editor, para representar Mário Castrim, o primeiro livro, os filhos, a doença, a perda. A história torna-se mais banal, longe do registo dos heróis, contrariando o universo das obras infantis que Ana escreve. É uma mulher comum aquela que é capaz de ditar sonhos de milhares de crianças pelas suas palavras. Diríamos, os da própria encenadora.

Predominam em palco os símbolos para um tempo que passa, do piano iluminado - a luz sempre tão importante quando Marta Dias quer criar uma atmosfera de intimidade - aos ramos das árvores que crescem em direcção ao céu. E, no meio desses símbolos, um relógio em que as horas avançam ao contrário. Tão misterioso.

Nesse retrocesso dos ponteiros, a história de amor de Paris, que parecia ter ficado lá atrás, regressa, como um fantasma que esteve sempre ali e ganha forma. É outra a idade, é outra a forma de viver o que parecia perdido. E a história volta a ganhar um interesse súbito quando tudo parece já conhecido. "Já não temos vinte anos." Mas teremos sempre Paris.


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