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Fora do meu reino, filha maldita

Há palavras doces que se transformam em espadas afiadas. Há Lear e um reino desfeito. Temos todas as caras pintadas de branco. Para esconder as nossas próprias traições.

Filipe Ferreira
30 de Setembro de 2017 às 12:00
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Lear
A peça encenada por Bruno Bravo está em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, até 15 de Outubro. Quarta às 19:00, quinta a sábado às 21:00 e domingo às 16:00.

As faces, pintadas de branco, são como uma máscara que revela toda a traição que há-de vir. A pureza alva não se manterá muito tempo em "Lear". Os seus contornos centenários permitem antevê-lo.

Qual entre vós mais nos ama? Plural majestático para o próprio rei, disposto a dividir a coroa e o território em três. Em troca: uma mera prova de amor das três filhas. Esperam-se palavras que saibam a mel. Lear vai recebê-las, sim. E vê-las, mais tarde, transformarem-se em espadas afiadas.

As duas filhas mais velhas entram no jogo e, dos lábios, saem-lhes delicadas construções frásicas. A Cordelia, a última, faltam-lhe as palavras. Quão grande é o vosso amor? Nada, acaba por responder perante a ausência de uma definição para o que sente. Silêncio. A cólera instaura-se no trono de pedra. A coroa divide-se apenas em duas partes. Fora do meu reino, filha maldita. Seja a sinceridade então o vosso dote.

O que se segue já se espera - ou não fosse William Shakespeare o seu autor. Lear é vítima da sua própria ganância em provas de amor. Sem coroa, um rei deixa de sê-lo e vê-se à mercê daquelas que juraram servi-lo. O vento torna-se então mais frio e a loucura uma presença sempre à espreita, pronta a tomar posse.

Bruno Bravo e a companhia Primeiros Sintomas trazem uma encenação geométrica, podia mesmo quase dizer-se recta e austera, à imagem do imaginário associado à realeza. No palco, a luz é também parte do elenco: enigmática, contida, repleta de significado. Junta-se um coro em alguns momentos chaves da narrativa e "Lear" caminha - por vezes, forçosamente - para o registo épico.

Impossível não destacar a interpretação da actriz Paula Só enquanto Rei Lear, num ponto de equilíbrio - nada cansativo - entre a postura monárquica e a sua desconstrução, rumo à loucura de quem perdeu tudo o que tinha, inclusive a identidade.

Enérgica, apoiada por um bobo deliciosamente construído por Carolina Salles, a protagonista mostra que Lear é uma figura maior do que o género masculino com que foi imaginada. Ana Brandão, António Mortágua, Carla Galvão, Joana Campos, João Pedro Dantas, José Redondo e Miguel Sopas completam o corpo de actores em cena na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa.

Uma voz vai-se impondo ao longo da história. É uma espécie de voz da consciência, pertencente às personagens e fora delas em simultâneo. À medida que se aproxima o final, torna-se - com a multiplicação do seu uso - uma sonoridade colectiva, embora nunca em sobreposição. É confusa, sim, mas a prova de que traidores somos todos nós. Também o público, confortável nas suas cadeiras, tem agora as faces pintadas de branco.

Não há nada a fazer. O cavalo sucumbiu com frio. Todos gelaram com a sua própria traição. Novos dias virão. Rei morto, rei posto.



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