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Farei do teu nome um buraco negro

Quão podre pode ser a natureza humana? No momento em que perde as regras de sempre, o homem transforma-se em animal. E outra lei se afirma: a do destino inalterável e irremediável.

07 de Outubro de 2017 às 12:00
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A vertigem dos animais antes do abate: a peça encenada por Jorge Silva Melo está no Teatro da Politécnica, em Lisboa, até 28 de Outubro.

"Somos uma família. Amemo-nos". E levemos esse lema ao extremo, ao ponto onde as leis humanas sucumbem. Amemo-nos como a natureza e a carne sabem fazer.

Só assim se consegue apreciar esta tão enigmática como desconfortável peça, "A vertigem dos animais antes do abate", que Jorge Silva Melo e os Artistas Unidos escolheram para a abertura de temporada.

O texto é de Dimítris Dimitriádis, cuja nacionalidade grega poderá justificar, por uma certa tradição, o role de tragédias que se hão--de suceder em palco. Durante hora e meia, entra-se numa uma viagem ao mais podre que a natureza humana consegue atingir.

Esta é a história de uma família - os pais e três filhos - que enriquece de um dia para o outro, que aceita tudo sem questionar. Podia-se dizer que engordam, como animais, com tanta fartura. Até que se apercebem que uma conversa sem sentido, dita há 20 anos, está a concretizar-se. A transformar-se numa praga que os corrompe por dentro.

Há de tudo um pouco. Incesto, morte ou promiscuidade, basta escolher. Todas as personagens sabem em que tabuleiro se movem, têm o jogo aberto entre si. É como se fossem senhores de si próprios e, ao mesmo tempo, meras peças de uma vontade superior. Chamá-la-íamos Deus ou destino, em palco corporalizado em três actores vestidos de negro. Nas suas vozes estão algumas das mais importantes reflexões da peça, que exige atenção redobrada para que alcancem os seus meandros.

Não é possível esquecer também que esta obra foi publicada em 2000, altura em que a crise económica dava os primeiros sinais na própria Grécia. Esta família é então exemplo daquilo que o dinheiro é capaz. E, acima de tudo, daquilo que uma força superior - num mundo cada vez mais descrente - pode levar a cabo quando o valor do "vil metal" passa a imperar.

Jorge Silva Melo opta pelo escuro, coloca os actores - João Meireles, Inês Pereira, Américo Silva, Vânia Rodrigues, André Loubet, Pedro Baptista, Pedro Carraca, João Pedro Mamede e Nuno Gonçalo Rodrigues - quase sempre na sombra. Em palco, nada mais do que o necessário. Dois sofás, umas cadeiras. E a ostentação representada por uma jarra de flores e um candeeiro repleto de lâmpadas vermelhas. Vermelho, essa cor tantas vezes associada ao pecado e à luxúria.

O ritmo rápido das palavras contrasta com um certo vagar da encenação ao início. À medida que o tempo passa, essa dinâmica em palco é crescente. Sente-se a angústia, a vertigem que o seu título clama. Este palco é um buraco negro que tudo suga. Há um ponto em que nos questionamos qual o sentido desta "A vertigem dos animais antes do abate", porque a história - de uma forma aparente - parece não avançar para lá de uma mera premonição a concretizar-se.

"Chega-me o que tenho. Quero-te a ti e às crianças". Basta isso. Quando a vontade é reconhecida, já não há nada a fazer. É tarde demais para voltar atrás. Os animais estão já a caminho do matadouro. E todos sabemos o que acontece quando as portas se fecham. 


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