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A OPA à PT reescrita pela Operação Marquês

Zeinal Bava e Henrique Granadeiro são acusados de terem ajudado Ricardo Salgado a encontrar accionistas para a PT no decurso da OPA e a aprovarem um pacote anti-Sonae, mesmo prejudicando a empresa na qual eram gestores. O Ministério Público acusa, também, o ex-primeiro-ministro de não assumir uma posição imparcial, como devia no exercício dessas funções.

Pedro Elias
20 de Outubro de 2017 às 10:39
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A história da OPA (oferta pública de aquisição) da Sonae sobre a PT foi reescrita pelo Ministério Público no âmbito da Operação Marquês. E, segundo a investigação, permitiu a José Sócrates receber 6 milhões de euros, por via de pagamentos ordenados por Ricardo Salgado. Ao longo da acusação, o Ministério Público parece não ter ficado com dúvidas de que a PT foi o principal motivo pelo qual o ex-primeiro-ministro terá sido corrompido. Dos 34 milhões que o Ministério Público diz terem chegado a José Sócrates de 2006 a 2015 - durante os seus mandatos como primeiro-ministro e já depois de ter perdido as eleições de 2011 para Pedro Passos Coelho -, mais de 26 milhões foram por conta dos alegados acordos com Ricardo Salgado para interferir, no âmbito da posição que o Estado tinha na PT (via Caixa Geral de Depósitos e pela "golden share" de 500 acções que lhe dava poderes especiais), na operadora de telecomunicações consoante os interesses daquele que foi o "dono disto tudo".

Na acusação da Operação Marquês, os investigadores colocam Ricardo Salgado no centro de todas as decisões tomadas pela PT, em particular desde 2006, altura em que a Sonae lançou a OPA sobre a empresa que tinha no Banco Espírito Santo o principal accionista privado, ainda que o Ministério Público assuma aquilo que sempre se foi dizendo: além da participação directa do BES, Ricardo Salgado foi, desde sempre, conseguindo colocar outros accionistas na PT por forma a dominar a operadora, não ficando amarrado à limitação de votos de 10%. Isso aconteceu com Patrick Monteiro de Barros, que saiu da estrutura accionista da PT em 2006 por discordar da estratégia para a operadora, como mais tarde com a Ongoing e a Fundação Berardo. Tudo com "ajuda" financeira do Grupo Espírito Santo que, aliás, ainda ganhou algum dinheiro com a venda pela Telexpress (entidade que era a titular da participação de Monteiro de Barros) da posição na PT, adquirida pela Ongoing, em 2006. Quando a Telexpress vendeu, procedeu "à liquidação dos financiamentos concedidos pelo BES e BES Cayman em 2001 para a compra dessas acções, sendo que o lucro de 5,5 milhões de euros gerado foi repartido entre os accionistas daquela: a Intertel, de Patrick Monteiro de Barros, e a Gaunlet, do GES", lê-se na acusação.

A entrada da Ongoing e da Fundação Berardo (em condições vantajosas) no capital social da PT na altura da OPA, por intermédio de Ricardo Salgado, não é hoje um dado novo, embora no âmbito da Operação Marquês se revelasse que a tentativa de angariar novos accionistas para votarem ao lado do BES, contra a OPA, tenha passado pelo Dubai. Logo em finais de Abril de 2006 (a OPA foi lançada a 6 de Fevereiro desse ano), Ricardo Salgado, acompanhado de Pedro Ferreira Neto (à época administrador da Escom), de João Ribeiro da Fonseca (ligado a Ricardo Salgado, tendo sido o presidente da Portugália quando esta companhia era do GES e que depois foi membro do conselho consultivo da PT), de José Maria Ricciardi (à época presidente do BESI), e de Hélder Bataglia (da Escom e que também é arguido neste processo), "deslocou-se ao Dubai com o fim de aí encontrar parceiros com capacidade económica para derrotar a estratégia da Sonae, diligência que não teve sucesso". Mas teve a empreendida por Zeinal Bava, então vice-presidente da PT, de garantir a presença de Carlos Slim, o milionário mexicano que concorria com a PT no Brasil, no capital da operadora nacional.


O Ministério Público acusa o ex-primeiro-ministro José Sócrates de ter recebido 34 milhões para favorecer grupos económicos. À conta da PT, terão sido 26 milhões.
 

E assim foi formado o núcleo anti-OPA: BES, Ongoing, Telmex (de Carlos Slim), Berardo. Faltava uma peça fundamental: o Estado, que tinha o poder da "golden share" e uma posição relevante via Caixa Geral de Depósitos.

A acusação não tem dúvidas de que "em data não concretamente apurada, mas situada entre 1 de Março e 18 de Abril de 2006", Ricardo Salgado, "temendo o sucesso da oferta do grupo Sonae, em execução do plano que traçou, propôs ao arguido José Sócrates, então primeiro-ministro, que, no exercício das suas funções governativas, e em contrapartida pelo pagamento de uma quantia avultada, condicionasse a actuação do Governo aos interesses do Grupo Banco Espírito Santo". Propôs, então, segundo se lê na acusação do Ministério Público, que, em troca de dinheiro, o Governo se opusesse à OPA através do voto da Caixa e da utilização da "golden share" caso fosse necessário para travar a investida da Sonae.

José Sócrates, na entrevista recente que deu à RTP, assumiu que se encontrou, pela primeira vez, com Ricardo Salgado, em São Bento, apenas em Outubro desse ano. Mas houve encontros públicos entre ambos, nomeadamente num almoço de inauguração da adega de Henrique Granadeiro, em Reguengos de Monsaraz, em Setembro de 2006, em plena OPA, no qual estiveram jornalistas, que presenciaram o encontro entre Sócrates, Salgado, Mário Lino, Zeinal Bava, entre outros.

Às declarações públicas de que o Estado iria ser imparcial na OPA, o Ministério Público contradiz com uma parcialidade recheada de dinheiro. E logo no início. O Ministério Público diz ter detectado uma transferência, cujo destinatário final era José Sócrates, no total de 6 milhões de euros, em Maio desse ano, quatro meses depois do lançamento da OPA.


O pagamento seguinte terá sido já depois do fim da OPA, em Julho de 2007. A OPA terminou a 2 de Março de 2007, com a assembleia-geral que resultou no voto contra da Caixa, e sem que o Estado tivesse necessidade de usar a "golden share" que, de acordo com o Ministério Público, seria mesmo accionada se a votação fosse desfavorável aos propósitos de Salgado. "Para o efeito, o arguido José Sócrates diligenciou no sentido de ser transmitido oralmente ao representado do Estado [o advogado Sérvulo Correia] que se deveria abster na votação, mas assegurando-se simultaneamente de que, caso no decurso da assembleia-geral da PT a proposta de alteração dos estatutos reunisse uma maioria de dois terços dos votos favorável, se transmitisse imediatamente ao representante do Estado que deveria exercer o direito de veto da 'golden share', votando contra."

Sócrates tem negado esta versão e, na mesma entrevista à RTP, mostrou o despacho que determinava que o representante do Estado se devia abster. Mas o Ministério Público fala de uma diligência oral, já que na carta instrutória remetida ao advogado não consta qualquer instrução de voto.

O Ministério Público propõe, desde já, que Sérvulo Correia seja ouvido para prova testemunhal.

O papel da caixa

Assim, a questão da "golden share" estava tratada. A da Caixa, para o Ministério Público, também. "Não obstante publicamente o Governo veicular a ideia de neutralidade face à sorte da operação, o arguido José Sócrates não deixou de transmitir ao presidente do conselho de administração da CGD, Carlos Santos Ferreira, e ao arguido Armando Vara, ambos nomeados para a administração da CGD por sua vontade, a orientação de que o grupo CGD deveria votar contra a alteração dos estatutos". Foi isso que a Caixa fez, na assembleia de Março de 2007, "não obstante a proposta revista da OPA [a Sonae tinha aumentado o preço de 9,5 para 10,5 euros] estar dentro do intervalo da avaliação efectuada e consignada em relatório elaborado pelo banco de investimento Caixa BI, apresentado à administração da CGD, e apesar de, chegando a mercado a oferta, ter sempre a possibilidade de não vender as suas acções". Santos Ferreira tem garantido (fê-lo na comissão de inquérito da Caixa) que a decisão sobre o voto do banco público foi feita em conselho de administração da instituição financeira sem interferência política, e que dois gestores até se abstiveram. O sentido de voto foi determinado pelo facto de se considerar que o preço não era suficientemente atractivo. O Ministério Público remete para relatórios de bancos de investimento nacionais e internacionais para dizer que os 10,5 euros oferecidos eram superiores à média do valor justo de cada acção.

O testemunho de Jorge Tomé, à época administrador da Caixa e da PT, foi relevante para a formulação da tese do Ministério Público. Este gestor terá testemunhado, de acordo com o processo, que a administração da CGD não deixou de seguir a posição do Governo, embora durante muito tempo, até data próxima da assembleia-geral da PT, a CGD não tivesse recebido orientação do Governo sobre o sentido do seu voto quanto à OPA. "Seria aliás anormal que a CGD, enquanto accionista da PT, não seguisse a posição do Governo numa questão tão importante como a da OPA", lê-se no processo. Este gestor disse mesmo aos investigadores que o BES pressionava também a Caixa para que votasse contra. Jorge Tomé disse ainda que só teve conhecimento do voto da Caixa no dia da assembleia, tendo sido informado por Carlos Santos Ferreira.


O Ministério Público contabilizou em 8,4 mil milhões de euros os ganhos financeiros do GES com a PT entre 2001 e 2014, ano em que o BES foi alvo de resolução.  


Hoje, passados 10 anos, reafirma-se que se a Sonae tivesse chegado aos 11 euros na oferta, a administração da PT mais dificilmente podia sugerir aos accionistas que chumbassem a oferta. Aliás, o Ministério Público não tem dúvidas de que o pacote de remuneração proposto pela PT para que os accionistas ficassem contra a OPA, que acabou por custar à operadora 5,87 mil milhões de euros - metade do valor da empresa em bolsa à época -, foi demasiado pesado para a operadora. O que contribuiu para a depreciação do valor bolsista da empresa. Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, no entender do Ministério Público, actuaram nos interesses de Ricardo Salgado, tanto na angariação de accionistas contrários à OPA, como na elaboração do plano de remuneração. "Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, cada um deles aderindo à proposta efectuada pelo arguido Ricardo Salgado, em violação dos deveres de lealdade, isenção, objectividade e de actuar de forma a proteger o interesse geral dos accionistas a que estavam obrigados enquanto administradores da PT SGPS, aceitaram apoiar e executar a estratégia de combate à OPA gizada por este, benéfica aos interesses do BES, mesmo que tal se viesse a revelar prejudicial aos demais accionistas", diz o Ministério Público, que imputa aos dois gestores alegados crimes de corrupção passiva, sendo Ricardo Salgado o alegado corruptor, por terem, segundo a acusação, aceitado receber dinheiro para seguir a estratégia do banqueiro na PT.

Zeinal Bava é referido como tendo recebido, já depois da OPA, 6,7 milhões de euros, enquanto a Granadeiro é imputado um pagamento de 6,5 milhões nessa ocasião. A estes valores ter-se-á somado, mais tarde, mais dinheiro - tanto para os ex-gestores como para Sócrates - por causa da estratégia seguida na venda da Vivo e entrada na Oi. No total, segundo o Ministério Público, Bava terá recebido 25 milhões de euros, tendo cabido a Granadeiro cerca de 20 milhões. Sócrates terá recebido, com origem no GES, os tais 26 milhões de euros. O Ministério Público diz que os acordos foram feitos por Salgado de forma separada, "de modo que cada um não soubesse do comprometimento dos demais".

Ribeiro Vaz contratado e descontratado em pouco tempo

A Sonae ainda manteve conversas e negociações com a Caixa e com o Governo por causa da OPA. "As negociações foram absolutamente inúteis", terá dito, de acordo com a Sábado, Paulo Azevedo, chamado como testemunha pelos investigadores da Operação Marquês. E aí revelou que as negociações tiveram dois intervenientes: Osório de Castro, o advogado da Sonae, e Proença de Carvalho, pela Caixa. Pouco antes de Dezembro de 2006. "O advogado da outra parte chegou a dizer ao nosso advogado 'não vale a pena, não se esforcem", terá declarado Paulo Azevedo, que o Ministério Público ouviu e que sugere que volte a ser testemunha no processo. Proença de Carvalho foi advogado também de José Sócrates e hoje o seu filho - Francisco Proença de Carvalho - é quem lidera a defesa de Ricardo Salgado. Proença de Carvalho, depois da OPA e da cisão da PT Multimédia, passou a presidente do conselho de administração da nova sociedade que passou a designar-se de Zon. As negociações, que Paulo Azevedo catalogou como estranhas, tiveram, a dada altura, um elemento novo: Luís Ribeiro Vaz, que o Ministério Público pretende que também seja chamado a testemunhar no processo. A 3 de Abril de 2006 foi nomeado assessor do Ministério das Obras Públicas, então liderado por Mário Lino, pelo secretário de Estado Paulo Campos (os dois governantes estão também na lista de pessoas que o Ministério Público recomenda para testemunhas).

Luís Ribeiro Vaz, que tinha estado na Oni, não tinha conseguido ingressar na PT. O Ministério Público (MP), na acusação, revela que em Setembro de 2005 - quando a lista dos órgãos sociais da PT para 2006 estava a ser constituída - Ribeiro Vaz "solicitou" a Ricardo Salgado que "diligenciasse pelo seu ingresso nos quadros no grupo PT", tendo enviado o seu currículo a Joaquim Goes, administrador à época da PT e do BES. Afinal, diz o MP, Salgado era quem "de facto controlava a nomeação dos altos quadros na PT". Não se revela na acusação porque não chegou a entrar na PT, mas acabou por surgir uns meses mais tarde como assessor no Ministério.

"A actuação de Luís Ribeiro Vaz no acompanhamento da OPA limitou-se à elaboração de alguns memorandos e à participação em reuniões realizadas no âmbito de contactos mantidos entre a CGD e o grupo Sonae durante o ano de 2006." Também, segundo a acusação, manteve contactos reguladores com Granadeiro e com Rafael Mora e Nuno Vasconcellos, os últimos dois da Ongoing. Ribeiro Vaz não aqueceu lugar. Em Dezembro de 2006, foi exonerado, porque, no entender do MP, "tomada que estava pelo arguido José Sócrates a decisão de o Governo se opor ao sucesso da OPA, o Governo passou a demonstrar desinteresse nas negociações com o grupo Sonae". O assessor não chegou a aconselhar o Governo sobre a OPA. E ingressou na TAP, à época ainda 100% pública, logo em Dezembro de 2006, passando mais tarde para a Cimpor (onde Proença de Carvalho preside ao conselho de administração).

Para a acusação, Salgado foi o dono e o responsável disto tudo

José Sócrates, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro terão, segundo a acusação, recebido dinheiro para actuarem no interesse de Ricardo Salgado na PT. Salgado, segundo a acusação, conseguiu ao longo dos anos controlo sobre a administração da PT - decidindo quem compunha os seus órgãos sociais, além da nomeação directa de dois administradores do BES para a PT. A estratégia de Salgado passou ainda, no entender do Ministério Público, pelo financiamento da compra de acções por accionistas controlados ou controláveis pelo GES. "Colocando pessoas da sua confiança pessoal nos lugares cimeiros da administração da PT e, por via dissimulada, através de estruturas do GES, controlando outra posição accionista, o arguido Ricardo Salgado conseguiu assegurar que nenhuma medida de gestão da PT era tomada contra os interesses económicos do Grupo Espírito Santo, assim obtendo, para este, avultados ganhos financeiros."

Ganhos financeiros através de prestação de serviços do seu banco de investimento, de depósitos, dividendos e aplicações de tesouraria que, segundo o Ministério Público, atingiram, entre 2001 e 2014, um valor superior a 8,4 mil milhões de euros, que adquiriu especial relevância antes de 2014, quando o BES foi alvo de resolução, com uma aplicação - que ficou por pagar - em papel comercial da Rioforte de 897 milhões de euros.

Mas, para o Ministério Público, a importância da PT para o BES não era apenas a de financiar a sua actividade e a das empresas do grupo, mas também era a forma de Ricardo Salgado garantir um controlo maioritário no próprio BES. É que a PT era detentora de 4% do BES, dizendo a acusação que Salgado "conseguiu controlar a participação e a gestão dos direitos de votos do grupo PT nas assembleias-gerais do BES e, desse modo, assegurar o controlo maioritário do BES". A PT chegou mesmo a ir ao aumento de capital que o BES realizou em Maio de 2014, meses antes de ser intervencionado.

O que se passou nos anos depois da OPA da Sonae só contribuiu para Salgado aprofundar a sua intervenção na operadora. Granadeiro e Bava, segundo a acusação, fizeram sempre parte da sua estratégia de controlo. O GES já se debatia com dificuldades. Na Operação Marquês, várias escutas telefónicas mostram a prevalência de Salgado em várias decisões de gestão da PT. Uma estratégia que seria repassada para a Oi, quando a junção das operações ficasse concluída. Não chegou a acontecer. 


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