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Mineração do mar profundo é a nova caixa de Pandora

Encontrar metais para servir as tecnologias que suportem as transições verde e digital está a levar à procura de novas fontes. O mar é uma delas, mas esbarra com a urgência de proteger os oceanos. Por cá, os Açores já proibiram a mineração nas suas águas, mas a nível nacional esse passo (ainda) não foi dado.

10 de Maio de 2023 às 12:00
Os Açores aprovaram uma lei que proíbe a mineração do mar profundo até 2050. DR
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Uma moratória aprovada por unanimidade pelo parlamento açoriano, a 20 de abril, proíbe a mineração do mar profundo ao largo dos Açores até 1 de janeiro de 2050. São 27 anos para se estudar o impacto que a atividade poderá ter nos ecossistemas marinhos, algo ainda desconhecido e o grande argumento dos defensores da proibição da mineração marinha a nível global.

Existe uma grande necessidade de encontrar metais como cobalto, cobre, níquel, ferro, manganês, entre outros, para possibilitar o desenvolvimento de novos equipamentos e tecnologias que sirvam as transições digital e energética. E os olhos da procura estão agora a virar -se para o mar profundo, na medida em que este é rico nestes metais, sobretudo em três ecossistemas específicos: nos habitats de nódulos polimetálicos, depositados entre 4 a 6 mil metros de profundidades; em crostas ricas em cobalto em montes submarinos; e em fontes hidrotermais, localizadas sobretudo na junção de placas tectónicas. Os Açores estão precisamente numa destas junções.

Com esta "urgência" em obter metais, aceleraram as movimentações junto da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, sigla em inglês) - a entidade criada para proteger os fundos marinhos, mas que também é responsável por autorizar a mineração - para formalizar o processo. Assim, até meados deste ano estão a decorrer negociações para regulamentar a exploração da área internacional do oceano, ou seja, toda a área que não faz parte da jurisdição de cada país e que corresponde a 90% do oceano, com águas entre os 200 metros e os 7.000 metros de profundidade.

O fim dos dois anos acontece no dia 9 de julho de 2023, o que significa que poderemos estar a escassos meses da abertura de um precedente sem igual, em que é autorizada, na área internacional do oceano, a primeira exploração comercial de minérios marinhos desde sempre. Ana Matias
Coordenadora de Clima e Poluição da Sciaena
A pequena República de Nauru, uma ilha localizada a nordeste da Austrália, assumiu especial relevância neste debate porque espoletou a regra dos dois anos junto da ISA, que permite a qualquer Estado-membro apresentar um pedido de adoção do regulamento de exploração no prazo de dois anos e prevê que, na ausência deste, os pedidos de licenças para minerar sejam considerados e aprovados provisoriamente. "O fim dos dois anos acontece no dia 9 de julho de 2023, o que significa que poderemos estar a escassos meses da abertura de um precedente sem igual, em que é autorizada, na área internacional do oceano, a primeira exploração comercial de minérios marinhos desde sempre", explica Ana Matias, coordenadora de Clima e Poluição da Sciaena.

Entre dois dilemas

O tema da mineração no mar é polémico, porque contrapõe estes dois grandes interesses atuais: proteção do planeta e recolha de metais essenciais às revoluções verde e digital. De salientar que, a favor do oceano, foram aprovados dois instrumentos globais nos últimos meses. No final do ano passado, com o Tratado de Biodiversidade de Kunming-Montreal, e já este ano, com o Tratado da Biodiversidade Marinha de Áreas fora da Jurisdição Nacional (BBNJ), ficou assegurada a proteção de 30% do oceano até 2030, sendo consensual que o planeta, e os oceanos em particular, precisam de proteção urgente para fazer face às alterações climáticas.

Também a Agenda da UE para a Governação dos Oceanos, de 2022, é clara em "proibir a mineração em alto mar até que as lacunas científicas sejam devidamente colmatadas, não surjam efeitos nocivos da mineração e o ambiente marinho seja efetivamente protegido".

Mas fora destes 30% sobra muito mar e quem é contra a mineração defende que não se deve explorar uma área do planeta sobre a qual pouco se sabe e desconhecendo-se formas de o fazer sem grades impactos na biodiversidade, uma vez que as máquinas de mineração "aspiram" o fundo para recolher esses metais, levantando plumas de sedimentos que estão estáveis no fundo do mar há milhões de anos.

"Quando levantamos estes sedimentos, forma-se uma pluma de sedimentos que pode atingir 800 metros de dispersão na vertical. Estes metais que estiveram acumulados vão ser libertados e suspendidos na coluna de água, e são metais bastante tóxicos. Todos os organismos que habitam nesta zona vão filtrar estes metais. Estamos a falar de impactar também cadeias tróficas a vários níveis", esclarece Ana Matias. Ou seja, por bioacumulação, quando os organismos servirem de alimento para níveis superiores da cadeia alimentar, levarão essa toxicidade com eles… até nós.

Além disso, a biodiversidade da zona será afetada, não só pelos sedimentos dispersos, mas também pela poluição sonora, impactando sobretudo cetáceos "numa coluna cilíndrica que pode atingir os 500 km", e pela poluição luminosa, uma vez que o fundo do mar é escuro e é nessas condições que a biodiversidade se desenvolve, explica Ana Matias.

Por isso mesmo, esta corrente defende que é necessária mais investigação e que, por isso, quaisquer intenções de mineração devem ser suspensas até haver mais conhecimento sobre o mar profundo. Defende também que antes de se avançar para o mar profundo deveriam esgotar-se as fontes assentes na economia circular. Nesta linha, um estudo da WWF concluiu que a procura destes minerais pode ser reduzida em até 58% através da inovação em tecnologia renovável e medidas de economia circular. O relatório "O Futuro é Circular: Economia Circular e Minerais Críticos para a Transição Verde" sustenta que estas medidas evitariam potenciais estrangulamentos no fornecimento de minerais sem iniciar uma nova indústria extrativa nociva no oceano profundo.

O tema é muito complexo e encerra em si próprio dilemas estratégicos para os quais não existem respostas taxativas. Ruben Eiras
Secretário-geral da Fórum Oceano
Por outro lado, a pandemia, a guerra na Ucrânia e as movimentações geopolíticas que se estão a estabelecer deixaram claro que é necessário ter controlo e acesso a matérias primas essenciais ao desenvolvimento dos territórios. Neste caso, nas corridas verde e digital, os metais são essenciais para não se ficar para trás.

"O tema é muito complexo e encerra em si próprio dilemas estratégicos para os quais não existem respostas taxativas", começa por referir Ruben Eiras, secretário-geral da Fórum Oceano. E explica que "para a Europa ter um sistema de energia baseado em renováveis e hidrogénio precisa destes minerais para as tecnologias da sua produção, armazenamento e gestão". "A Europa para ter uma indústria digital avançada precisa de aceder a estes minerais. E o novo contexto geopolítico exige à Europa que primordialmente aceda a estes minerais dentro do seu território." Portanto, "no tema da mineração marinha, encontramo-nos num cruzamento, em que a UE é pressionada pela emergência da crise geopolítica e geoeconómica e pela emergência da crise ambiental e climática. As duas são igualmente importantes e cruciais". Assim, acrescenta, "para conseguirmos encontrar o ponto de compromisso, temos de rapidamente aumentar o nosso conhecimento sobre os ecossistemas do mar profundo e os impactos das operações de mineração, para que consigamos decidir com sabedoria: saber escolher o que podemos, o que não podemos e o que nunca deveremos fazer no mar".

A posição de Portugal

Portugal tem uma área marítima 18 vezes superior à sua área terrestre e está a caminho de a aumentar substancialmente. E tem a Estratégia Nacional para o Mar 2021-2030, que norteia o país nesta matéria e que assenta "numa economia azul sustentável", realizada "no quadro de um oceano saudável" e assegurando que "a recuperação económica e a proteção do oceano são baseadas no melhor conhecimento científico disponível", indica o Ministério da Economia e do Mar ao Negócios.

Neste sentido, qual a posição de Portugal relativamente à mineração do mar profundo? "O Estado português tem defendido que a atividade de mineração do mar profundo não deve iniciar-se sem o aprofundamento do conhecimento científico em torno dos seus impactos no ambiente marinho e na biodiversidade e sem que os riscos dessa atividade sejam suficientemente compreendidos, em linha com o princípio da precaução, e sem que os regulamentos normativos da atividade (comummente conhecido como Código Mineiro) em curso na Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos esteja concluído. Portugal considera também que, não sendo finalizada a negociação em curso até julho deste ano, o Conselho da ISA não está obrigado a aprovar um plano de trabalho para início da mineração", explica o ministério.

Por cá, os Açores já tomaram posição e proibiram a mineração nas suas águas, mas a nível nacional esse passo não foi dado. Questionado pelo Negócios se Portugal - tal como Espanha, França, Alemanha ou a Costa Rica já fizeram - vai estabelecer uma moratória para proibir a mineração em mar profundo na sua Zona Económica Exclusiva, o Ministério da Economia e do Mar não respondeu diretamente à questão, reforçando novamente a necessidade de mais conhecimento e investigação para conhecer o oceano.

"Considerando que a mineração em mar profundo não é uma questão para o presente, o que a afastará da nossa realidade nas próximas décadas, devemos guiar a nossa atenção e esforços para o incremento do estudo do mar, conscientes da sua importância e da essencialidade da sua preservação, para que as gerações vindouras o possam entender melhor do que nós e o protejam com maior consciência e discernimento, fruto de informação fundamentada cientificamente", defendeu o gabinete do ministro António Costa Silva.

De salientar que Portugal, através do INESC TEC, integra e coordena o projeto internacional Trident, no valor de 16 milhões de euros, que visa desenvolver, durante os próximos cinco anos, um sistema de avaliação contínua do impacto ambiental das atividades de exploração e exploração no fundo marinho.

Impacto nos Açores

Voltemos aos Açores, porque a questão da mineração marinha é particularmente sensível nesta região. Como estão localizados numa junção de placas tectónicas, rica em minerais, os Açores são uma área apetecível para a mineração marinha. Um dos seus maiores valores geológicos é a Dorsal Média-Atlântica (DMA), na sua maioria submersa, com montes submarinos e campos hidrotermais repletos de biodiversidade.

Cientistas e ambientalistas dizem que pouco se conhece do mar profundo. No caso das águas ao largo dos Açores muito ainda está por explorar. "A zona económica exclusiva dos Açores engloba um milhão de quilómetros quadrados, sendo que apenas 5% está a uma profundidade de 1500 metros", explica Telmo Morato, investigador da Universidade dos Açores.

O conhecimento que existia do mar profundo dos Açores era bastante reduzido e localizado a três ou quatro sítios. Telmo Morato
Investigador da Universidade dos Açores
Por isso, até há pouco tempo "o conhecimento que existia do mar profundo dos Açores era bastante reduzido e localizado a três ou quatro sítios", por falta de meios disponíveis e pelos custos elevados associados a essa exploração. Nos últimos anos, os investigadores têm-se centrado no estudo de zonas menos profundas, conseguindo já recolher dados de mais de 100 estruturas geomorfológicas (montanhas) que existem nos Açores até aos 1.000 metros de profundidade.

No que respeita a estudos sobre o impacto da mineração do mar profundo, várias investigações realizadas pela Universidade dos Açores dão conta de que estes sedimentos, que não serão redondos como grãos se areia, mas sim em forma de estrela, poderão dispersar para uma área de 150 km2, o que corresponde a 10 mil campos de futebol, e por uma coluna de água de 800 a 1.000 metros na vertical.

Também o impacto nos corais de água fria foi estudado. O investigador refere que "a maior parte dos corais de águas frias serão impactados muito rapidamente", tendo-se projetado que "poderia provocar a morte da colónia entre quatro a 27 dias, dependendo da espécie e da variabilidade natural e da condição das várias colónias". Outro estudo desta universidade focou-se na sobreposição de atividades, tendo concluído que "existe uma sobreposição com a pesca local, não só a pesca de fundo, mas a pesca pelágica, em valores que variam entre os 10% e os 15% nuns casos e de 80% para outros casos", explica.

Entretanto, como em julho o conselho da ISA voltará a reunir para deliberar sobre o início da mineração ao largo de Nauru, os oponentes apelam a uma moratória global para travar o início desta atividade.

Dados a reter Mar profundo: com profundidade acima dos 200m corresponde a 90% dos oceanos.

Metais procurados: cobalto, cobre, níquel, ferro, manganês, entre outros.

Impacto da mineração:
• Sedimentos podem dispersar por 150 km2 e atingir 800m de dispersão vertical.
• Poluição sonora pode atingir 500 km.
• Corais podem morrer em menos de um mês.
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