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17 de Setembro de 2014 às 17:19

Os truques do comércio da China

No ano passado, a China alcançou aparentemente outro marco na sua ascensão meteórica, ao ultrapassar os Estados Unidos e passar a ser a maior potência comercial do mundo, com as suas receitas comerciais totais avaliadas em 25,83 biliões de yuans (4,16 biliões de dólares). Mas este feito é, em grande medida, ilusório – e não se deve permitir que oculte a necessidade da China de transformar o seu modelo de comércio.

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Desde a década de 90, a China tem estado a construir o seu "comércio de aperfeiçoamento passivo" – mediante o qual importa "inputs" intermédios de outros países, elabora-os ou monta-os e depois exporta-os – levando a relação do comércio de produtos intermédios face ao comércio externo a crescer rapidamente. Os "inputs" intermédios abrangem cerca de 28% das exportações mundiais, mas 40% das exportações totais da China. Tendo em conta que o comércio tradicional é baseado no país de origem, a segmentação do valor acrescentado e da divisão internacional do trabalho em múltiplos níveis podem distorcer os dados do comércio.

 

Por exemplo, o modelo do "comércio triangular" – onde a China importa quantidades significativas de "inputs" intermédios dos países do este asiático, como o Japão e a Coreia do Sul, e depois exporta os produtos finais para os Estados Unidos – permite uma grande redundância na documentação comercial. Em 2010, mais de um quarto dos 19 biliões de dólares do mundo em exportações foi contabilizado mais do que uma vez.

 

A dependência da China das actividades de baixo valor acrescentado, como o processamento e a montagem, está enraizada na sua histórica falta de capacidade para investir em investigação e inovação. Durante muito tempo, o país foi capaz de superar essa deficiência ao aproveitar a sua abundante força de trabalho para se tornar um líder mundial na indústria de baixo custo e intensiva em mão-de-obra.

 

Mas a vantagem do baixo custo da indústria da China está a diminuir rapidamente, devido ao aumento dos salários e à descida do dividendo demográfico. E a sua baixa posição nas cadeias de valor mundiais significa que os benefícios reais das suas exportações continuam a ser muito inferiores aos das economias avançadas como os Estados Unidos, que se especializam na tecnologia avançada e produção de grande valor acrescentado.  

 

Esta combinação de subida dos custos laborais e de baixo valor acrescentado é claramente insustentável. Para que a China passe de um país comercial grande a potência comercial, deve aumentar a sua produtividade, de modo a que o sector da indústria acrescente maior valor às exportações (e, cada vez mais, para os bens de consumo interno).

 

Para ser correcto, a vantagem comparativa duradoura da China na elaboração e montagem de produtos industriais permitiu-lhe manter a sua posição como maior exportadora mundial. Como se transferiram para a China enormes quantidades de trabalho de elaboração e montagem com grande densidade de mão-de-obra a partir do Japão, Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e Hong Kong, o mesmo aconteceu com os excedentes comerciais dessas economias. Além disso, este processo contribuiu para os grandes – e muito criticados – desequilíbrios comerciais com os Estados Unidos e a União Europeia, os mercados finais mais importantes dos produtos industriais elaborados na China.

 

Mas, mais uma vez, os números podem não ser aquilo que parecem. Consideremos que o crescente comércio de re-importação da China, onde os produtos exportados para os países vizinhos, particularmente Hong Kong, regressam à China continental. As re-importações da China foram multiplicadas por doze desde 2000 e agora eclipsam as de outros principais re-importadores como percentagem do comércio total.

 

Tendo em conta o avanço da logística e infra-estruturas de Hong Kong, é uma ligação relativamente barata e eficiente através da qual se podem enviar os produtos. Em 2011, Hong Kong encarregou-se de aproximadamente 14% das exportações da China continental, 13% das suas importações e mais de 60% do total de re-exportações de Hong Kong vieram da China continental. Enquanto isso, ao exportar os seus produtos por zonas designadas para a elaboração de produtos destinados à exportação, as empresas ganham acesso às devoluções dos impostos por exportação e, uma vez que se importa e se elabora a carga intermédia, também tarifas vantajosas sobre as exportações.

 

As re-importações dos parceiros comerciais da China são contabilizadas como parte das importações totais – e, neste contexto, a China trata Hong Kong como parceiro comercial e não como uma zona de comércio livre. Deste modo, as re-importações servem para inflamar os dados do comércio da China, o que significa que o desequilíbrio comercial entre a China e os países avançados tem sido exagerado de forma significativa.

 

Além disso, as simulações com modelos demonstram que os sectores de exportação da China que têm os maiores rácios de valor acrescentado no estrangeiro estão concentrados na indústria –da qual mais depende a economia da China. De facto, 26% do valor acrescentado do sector primário não é criado na China.

 

Tendo isto em conta, o excedente comercial da China face aos Estados Unidos diminuiu em 36%. Também se reduziram consideravelmente os excedentes da China face à Europa e Índia e aumenta mais ainda o seu défice face ao Japão. Estes dados transmitem a mensagem inequívoca de que não se deve subestimar a quantidade de "recheio" que faz parte do volume total do comércio da China.

 

Dada a importância da ascensão na cadeia de valor para a futura competitividade industrial da China – sem mencionar a ameaça que representa a "re-industrialização" nos países avançados como os Estados Unidos – os líderes do país devem agir agora para dar à economia uma nova vantagem que possa substituir a abundante mão-de-obra de baixo custo. Para este fim, devem promover o investimento em investigação e inovação, bem como na saúde e educação da força de trabalho.

 

Do mesmo modo, a China deve cultivar as suas próprias empresas multinacionais para participarem na indústria e vendas, à escala mundial. Ainda que estas actividades possam parecer a simples exportação de produtos intermédios, equivalem à implantação e ampliação da produção nacional, o que realça o papel do país originário na configuração das cadeias de valor mundiais.

 

Por último, a China deve participar activamente no movimento mundial rumo aos acordos bilaterais, trilaterais e regionais de comércio livre, acelerando as negociações para acordos com o Japão, Coreia do Sul e com a Associação dos Países do Sudeste Asiático. Ao mesmo tempo, de modo a elevar a sua posição na distribuição dos rendimentos das cadeias de valor mundiais, a China deve procurar negociações para acordos com os Estados Unidos e a Europa.

 

Antes de tudo isso, contudo, os líderes da China devem mudar de perspectiva. O reconhecimento da China como o maior país comercial do mundo não é a "marca histórica" redundante que os seus líderes declaram. Este ponto atractivo será alcançado quando a indústria chinesa aumentar a sua posição dentro das cadeias mundiais de valor e a sua influência nelas.

 

Zhang Monan é membro do Centro de Informação da China, membro da Fundação Chinesa de Estudos Internacionais e investigadora da Plataforma de Pesquisa Macroeconómica da China.

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2014.

 

Tradução: Raquel Godinho
www.project-syndicate.org

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