Opinião
O paradoxo de liquidez da China
Considere isto: apesar das elevadas reservas em moeda estrangeira da China – o resultado de um persistente excedente da conta corrente – as taxas de juro de mercado, e do mercado interbancário de curto prazo, estão a subir. Como é que isto aconteceu, e o que devem os políticos fazer?
O problema tem uma raiz estrutural. O stock monetário da China é relativamente abundante. Como o maior emitente de moeda do mundo, toda a oferta de moeda da China (M2) é 1,5 vezes superior à dos Estados Unidos, com um rácio M2/PIB de cerca de 200%, o que compara com cerca de 80% nos Estados Unidos.
A economia chinesa está muito alavancada. Nos anos que antecederam a crise económica global, a dívida total da China rondava cerca de 150% do produto interno bruto (PIB). Mas, desde 2008, a expansão do crédito avançou a um ritmo surpreendente, conduzindo o rácio da dívida face ao PIB para cerca de 200%, sendo que apenas o crédito privado (incluindo o das empresas estatais) contabilizava cerca de 130% do PIB.
Além disso, a China continua a atrair elevados montantes de capital transfronteiriço, à medida que os países desenvolvidos, como os Estados Unidos desenvolvem políticas monetárias expansionistas. De acordo com um relatório de crédito do renminbi, as reservas em moeda estrangeira do Banco Popular da China subiram para 27,5 biliões de renminbi (4,5 biliões de dólares) em Setembro, mais 126,3 mil milhões de renminbi desde Agosto – o ganho mensal mais elevado desde Abril. Ao mesmo tempo, os novos fundos de renminbi do Banco Popular da China pendentes para moeda estrangeira – o montante de renminbi que o banco central gasta na compra de activos em moeda estrangeira – totalizam 268,2 mil milhões de renminbi, reflectindo o aumento mensal de quase 170 mil milhões de renminbi.
Em vez de aliviar os constrangimentos de liquidez, como esperado, estes ganhos exacerbaram-nos, reflectindo um pico nas taxas interbancárias em Outubro, quando da taxa de sete dias subiu para 5% e a yield das obrigações do Tesouro a dez anos atingiram o nível mais elevado em cinco anos. E é aqui que está o paradoxo da política económica chinesa.
O aumento das restrições de liquidez, aparentemente é consequência de todas as decisões recentes do Governo. No início deste ano, Banco Popular da China tentou limpar os seus activos tóxicos e promover a desalavancagem do banco. Estes esforços contribuíram para uma contracção no crescimento dos activos e da dívida, o que contribuiu também para o severo aperto de liquidez que sacudiu os mercados financeiros e fez disparar as taxas de mercado monetário em Junho.
O Banco Popular da China resumiu as suas operações de reporte – a compra de obrigações aos bancos comerciais com o compromisso de revende-las no futuro – à injecção de liquidez no sistema bancário. Mas, dada a subida das taxas de licitação, o pico de custos de capital e as restrições nas transferências de activos, estes esforços têm pouca probabilidade de virem a aliviar a tensão.
Claramente, o problema da China não é de activos ou de liquidez insuficiente. Em vez disso, a estrutura de capital e a maturidade desadequada – o resultado de uma rápida e desequilibrada acumulação de dívida nos últimos cinco anos – distorceu a alocação de recursos, o que amplificou as falhas dos sistemas financeiros e aumentou os riscos.
Além disso, o sistema financeiro tornou-se excessivamente dependente do crédito, especialmente no que diz respeito aos riscos dos activos. Com os canais de financiamento extremamente limitados, os bancos têm sido forçados a terem uma forte participação, assumindo riscos consideráveis, o que é agravado pelos mercados subdesenvolvidos de dívida e de acções. Num ambiente em que o risco está tão concentrado, qualquer choque pode ser equivalente a um golpe sistémico no sector financeiro.
Para tornar as coisas piores, o sector financeiro está cada vez mais a divergir da economia real. À medida que as reservas monetárias crescem, a eficiência do capital desce. Com uma percentagem substancial de recursos financeiros alocados em infra-estruturas e desenvolvimento imobiliário - que tem uma baixa eficiência - o capital tem tendência a voltar para o sistema financeiro, em vez de seguir em direcção às actividades da economia real.
Finalmente, a recessão da folha de balanço da China já quase começou. Desde 2008, a sede de liquidez dos governos locais socorreu-se de várias medidas - incluindo empréstimos que ficaram fora dos balanços e financiamento através de empréstimos interbancários - para canalizar capital para os veículos de financiamento dos governos locais e para as empresas estatais. Isto impulsionou os rácios de dívida dos governos, empresas e bancos, o que fez com que os balanços se deteriorassem rapidamente. Agora, há a pressão para desalavancar – um processo que vai inevitavelmente provocar um aperto de liquidez.
O reembolso de dívida de curto prazo é fundamental para o funcionamento do sistema financeiro. De facto, de acordo com o economista Irving Fisher há muito que foi criada a teoria da "deflação de dívida", ou seja, quando uma economia está seriamente endividada e sofre um choque, os efeitos conjuntos da dívida e da deflação podem despoletar uma recessão.
Tal resultado iria fazer com que os balanços - quer do sector público quer do sector privado - deteriorassem-se ainda mais, aumentando os receios de incumprimento e um aumento dos custos de financiamento. Os esforços subsequentes para desalavancar podem fazer com que os balanços contraiam e que os multiplicadores de dinheiro se reduzam e, por conseguinte, haja uma diminuição da confiança o que pode prejudicar os empréstimos.
Estas alterações no apetite pelo risco estão já a contribuir para um aumento da preferência por dinheiro. Enquanto a acumulação de dinheiro empurra as taxas de juro nominais através de uma redução do dinheiro em circulação, o rápido declínio na inflação vai aumentar a actual taxa de juro e, por conseguinte, agravar o fardo da dívida.
Em suma, os problemas de liquidez da China estão enraizados na acumulação de alavancagem, o que despoletou a deflação de dívida. Com isto em mente, as políticas macroeconómicas deviam apenas reduzir o endividamento e os custos de financiamento através de cortes nas taxas de juro e reservas mínimas, o que vai ajudar no sentido de fortalecer as folhas de balanço.
Isto significa abandonar o modelo de crescimento assente no investimento, promover reformas monetárias e financeiras mais profundas, impulsionar o investimento em eficiência e a alocação de recursos e melhorar o funcionamento governamental. Isto é difícil e é algo que pode ser alcançado apenas através de um compromisso de longo prazo dos políticos.
Zhang Monan é membro do Centro de Informação da China, membro da Fundação Chinesa de Estudos Internacionais e investigadora da Plataforma de Pesquisa Macroeconómica da China.
Copyright: Project Syndicate, 2014.
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Tradução: Ana Laranjeiro