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09 de Março de 2007 às 13:59

Uma recordação da Guerra Fria

Esta semana e a que passou trouxeram à memória os tempos da Guerra Fria, do confronto Leste – Oeste, da divisão da Europa em primeira análise, e do Mundo mais em geral. O foco da discórdia entre Moscovo e Washington,...

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O foco da discórdia entre Moscovo e Washington, e as declarações em tom que se julgava já empoeirado das gavetas do Kremlin e as divergências mais ou menos surdas entre a Velha Europa e a nova Rússia surgem como se alguém tivesse subitamente assoprado a poeira do velho léxico e o trouxesse de novo para a política.

Tudo começou, mais ou menos discretamente no início de 2006, quando Washington manifestou a sua intenção de colocar uma rede de radares de detecção precoce sincronizados com baterias de mísseis antimísseis em dois países saídos da zona de influência da velha URSS e do Pacto de Varsóvia: a República Checa e a Polónia.

Ao fazê-lo, os Estados Unidos tomaram a decisão de abandonar o velho tratado ABM (que permite apenas que duas cidades – no caso da Guerra Fria, Washington e Moscovo – estivessem ao abrigo de ataques de mísseis balísticos através de um sistema antimíssil). Vladimir Putin, o sucessor de Boris Ieltsin e distinto convertido quadro do extinto KGB, na ocasião limitou-se a, displicentemente afirmar que não punha em causa a segurança da Rússia.

Um anos mais tarde a correcção de Putin às suas declarações anteriores e as declarações ameaçadoras dos seus militares de confiança dão à decisão norte-americana uma nova amplitude. Mas dão da Rússia a ideia muito clara de que não abdica do seu espaço defensivo avançado que eram os seus satélites do Pacto de Varsóvia, hoje na maioria membros da União Europeia, mas pior que isso da NATO.

A mentalidade do cerco dominante na doutrina político-militar de Moscovo não tem nada de novo nem é uma realidade que se possa encarar de ânimo leve. A subcultura do cerco não é um produto da era soviética mas uma herança dos czares que se agravou com o final da URSS e o enfraquecimento militar da actual Rússia. Cercada por países com quem mantém contenciosos fronteiriços, como a China, por províncias pouco satisfeitas com o domínio continuado de Moscovo, com os países saídos da queda da URSS que nutrem pelo Kremlin pouca simpatia, com problemas graves na Chechénia, e sem tampão ao longo da linha Óder – Neisse, a Rússia sente uma vulnerabilidade que não conheceu nem no tempo dos czares, quando era temida pelo seu poderio.

O tampão europeu não existia quando Napoleão se virou para o colosso gelado e ali foi derrotado, como não existiu quando Hitler decidiu desastrosamente enfrentar o General Inverno. Aliados também a Rússia não conheceu senão os de circunstancia, como na 2ª Guerra Mundial e que em poucos anos a cercaram com uma aliança militar – a NATO –, a que se seguiriam outras como a ANZUS na Ásia Pacifico e o domínio dos mares pelos Estados Unidos e os seus aliados da NATO e da ANZUS. Diego Garcia tornou-se de ilha paradisíaca em porta-aviões flutuante, e por aí for.

Vladimir Putin herdou uma Rússia economicamente desgastada e desorganizada, em colapso. O ex-KGB acabou por virar os destinos económicos do país graças aos seus petrodólares e apostou de novo no complexo militar-industrial que entregou ao seu vice Primeiro-ministro, Serguei Ivanov companheiro do KGB e seu possível sucessor nas eleições de 2008.

O rearmamento da Rússia não é, ainda, uma realidade. Durante anos perdeu os comboios tecnológicos e a arma mais ameaçadora que foi capaz de apresentar foi uma versão do S-400, desenvolvido na década de 80, em plena Guerra Fria e que necessitou de quase três décadas para ser aperfeiçoado. Contudo na aviação militar os desenvolvimentos continuaram e daí a capacidade de ameaçar a "destruição do sistema" a implementar nos seus antigos satélites. A verdade é que prevê hoje investir na Defesa 150 mil milhões de euros nos próximos oito anos exclusivamente para a modernização do seu equipamento. E isso não pode ser ignorado. Sobretudo face a uma Europa nada disposta a investir num seu complexo militar industrial. E essa é a maior fragilidade europeia.

Washington ao tomar a decisão de instalar esta rede não o fez sem anunciar a sua intenção a Moscovo e receber apenas um frio silêncio. O Kremlin limitou-se a recordar que pretende um inaceitável direito de veto nos territórios que estavam na sua esfera de influência. O Kremlin porém sabia mais que isso. As suas ameaças e protestos prematuros eram dispensáveis. Sabia que a "Nova Europa", constituída pelos seus antigos satélites está em aberto desacordo com a "Velha Europa" da CEE e da Guerra Fria.

Infantilmente, os "novos europeus" (passe a expressão) estão quase sempre disponíveis para aceitar quanto possa atingir Moscovo. Não só não perdoam o passado como insistem em não o esquecer, mesmo quando integrados numa União Europeia que pretende manter melhores relações com aquele que, desde a Guerra Fria, é um dos seus principais fornecedores de gás natural (até a Baronesa Thatcher entrou em conflito com o seu amigo Ronald Reagan por causa do gasoduto transiberiano) e potencial fonte de abastecimento petrolífero. Mas também enorme mercado carente e sequioso dos bens produzidos na UE.

Em contradição com os "novos europeus" surgem na primeira linha os alemães cujo território foi durante 40 anos o campo de batalha avançado de um confronto Leste-Oeste. Os franceses não vêem com bons olhos o escudo antimíssil americano. Todavia, o assunto não foi abordado nos Conselhos Europeus e os americanos, não sem alguma arrogância, recusam a sua discussão ao nível da NATO.

O escudo não visa em primeira análise qualquer, presumivelmente improvável ataque russo, mas declaradamente o Irão ou com outra origem não especificada. A geografia levanta algumas questões.

A UE não está em condições de se substituir aos Estados Unidos num sistema de defesa que a pode beneficiar. A sua falta de determinação em investir na defesa e a sua obsessão pelo défice tornam-na dependente. Por muito que os "velhos europeus" protestem são incapazes de responder positivamente a Washington se porventura ao nível NATO se determinasse que a ameaça era real e os americanos delegassem nos europeus o desenvolvimento e controlo do sistema. Assim, a UE e os europeus da NATO têm de conceder aos americanos a instalação dos sistemas e países soberanos, mesmo que membros da UE, e deixar a Washington o controlo dos sistemas.

Mesmo que o sentimento de cerco dos russos seja legítimo a política não aceita princípios de boa-fé e de boas vontades, que no passado já deram maus resultados. O máximo a que os europeus podem ascender será a um papel de embaixadores de boa vontade procurando desfazer a tensão que se está a criar entre a Casa Branca e o Kremlin. Mas isso terá de passar também pelo aproveitamento de outras oportunidades diplomáticas que surgem e passam pelo Médio Oriente onde parece estar enterrada a chave da boa-fé e das boas relações.

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