Opinião
Uma estalada para acordar
Há um jornalismo que se pode mesmo apelidar de «farwest», porque não passa de uns tiros para o ar. Faz muito barulho, mas poucas vezes acerta no alvo.
Num estado de direito democrático, não se questiona o papel dos meios de comunicação social, que têm também a função de permitirem aos cidadãos a capacidade de decisão sobre as questões que se colocam à comunidade. O direito à informação é, aliás, uma base fundamental para uma cidadania responsável e participativa. É por isto que os profissionais da informação têm uma latitude jurídica e institucional alargada, bem como garantias particulares no exercício da sua profissão. Mas, para que o circuito funcione, é fundamental que a informação veiculada seja objectiva e imparcial e que respeite os factos que lhe dão origem. É para isso que se garante aos jornalistas acesso privilegiado à informação, a reserva das fontes e um certo grau de impunidade - para que possam cumprir o seu dever de informar. Mas pede-se, em contrapartida, que o façam de uma forma responsável.
Reveste-se de especial seriedade, o cuidado na avaliação da relevância jornalística e da confirmação dos factos. A objectividade e imparcialidade são os limites frágeis que separam a informação da propaganda. E, dito sem hipocrisias, a propaganda existe em Portugal. Sob a forma do mediatismo fácil que traz para o horário nobre da televisão a história com sangue e lágrimas, sob a forma da peça deliberadamente enviesada por simpatia política ou clubista, mas também sob a forma de artigos que, por pura preguiça ou pressão da concorrência, saem sem a devida confirmação das fontes e audição das partes. E até quando o não facto se transforma em facto pela pressão do momento. Há um jornalismo que se pode mesmo apelidar de «farwest», porque não passa de uns tiros para o ar. Faz muito barulho, mas poucas vezes acerta no alvo.
A isto assistimos todos os dias, e aparentemente sem consequências para aqueles que abusam do dever que lhes confiamos e o transformam na subtileza de nos enganar, de nos influenciar, de nos reduzir a mentecaptos. Sócrates, o original, preconizava que se aplicasse aos magistrados, para delitos idênticos, o triplo da pena que ao cidadão comum. Mas em Portugal, a informação é continuamente baleada sem que ninguém se incomode muito ou faça disso tema sério. Exemplos disto? Os comentários «analíticos» dos políticos em suposta reforma (mas cheios de vontade de voltarem ao activo), as cenas de faca e alguidar que compõem os telejornais nacionais e, aberração das aberrações, as «notícias» sobre os programas e vedetas das próprias estações televisivas.
Ora tivemos recentemente o caso do empresário Costa Leite, que se atreveu a dar uma «solha» a um repórter que se atravessou no seu caminho. Coisa que, obviamente, não se faz. Mas o patrão da Vicaima, se perdeu porque agiu por impulso, tem razão num pequeno detalhe: o impacto mediático de uma manifestação conjunta do Greenpeace e da Quercus é sempre muito superior a qualquer razão que o suposto agressor do ambiente possa ter. Algumas instituições vão ganhando, de uma forma quase transcendente, uma aura de reputação que lhes confere uma quase intocabilidade. Afinal porque é que os manifestantes foram parar à porta da Vicaima? Porque supostamente a empresa importaria madeiras exóticas.
O problema que decorre daqui é que mesmo que a Vicaima não importe ou trabalhe com essas madeiras, nos telejornais e nas notícias parece sempre que a empresa é uma criminosa inimiga do ambiente. Há um efectivo desequilíbrio entre a «força» dos bons e o «poder» dos maus nas imagens televisivas e nos textos jornalísticos, porque os jornalistas não escapam, eles próprios, a uma miríade de subjectividades e ideias feitas que se sobrepõem ao que é real. E os jornalistas, limitados pelo tempo, pela necessidade de construírem títulos e de ganharem «share» de audiências, acabam por ceder ao mais simples, que é o que parece e não o que é realmente. E a realidade acaba construída por cima do que parece, distorcendo o mundo num círculo vicioso e corrupto. A bofetada do senhor Costa Leite, à falta de outro argumento, justifica-se por um motivo simples: às vezes é preciso vir alguém com alguma brusquidão para nos fazer acordar. E ver que há outro mundo, para lá do mundo que nos querem mostrar.