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22 de Março de 2006 às 13:59

De olhos em bico

Quando se passeia pelos centros comerciais ou os cinemas - por onde se arrasta a classe média portuguesa aos fins-de-semana - não se vêm chineses. Imagino que estejam a trabalhar ou em actividades de lazer dentro da sua própria comunidade imigrante.

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Seja como for, os chineses, pelo menos estes chineses, têm uma atitude de vida que os orienta para o trabalho e não para o lazer.

A emergência da China, enquanto grande potência industrial, assusta muitas lideranças empresariais, um pouco por todo o mundo. A capacidade dos chineses produziram em grande escala e muito mais barato é um factor perturbador da chamada «ordem económica mundial». Grandes multinacionais e pequenas empresas não conseguem competir com os produtos chineses, colocados nos mercados internacionais a preços mais baratos. É a história dos têxteis chineses, que ameaçam a industria têxtil portuguesa. E também a dos automóveis chineses, que são comercializados a preços muito inferiores aos praticados pelo «establishment» da indústria automóvel mundial.

De forma que se criou aqui uma questão da ordem do comércio internacional. As indústrias ameaçadas argumentam que os chineses produzem em «dumping» social e ambiental - isto é, sem respeitarem as condições de trabalho e ambientais que são as comuns nas economias ocidentais. Em resultado, há quem reclame mais proteccionismo e este debate tem-se centrado à volta dos benefícios e malefícios do livre comércio e da «exploração» da mão-de-obra chinesa. De qualquer forma, como os industriais portugueses afectados por este tema são poucos e estão genericamente afastados dos círculos do poder político e mediático, esta tem sido uma discussão restrita aos pequenos meios associativos.

Mas a edição de domingo do Correio da Manhã noticia um facto curioso: «a área industrial de Chelas recebeu ontem o Centro Ásia, o mais recente espaço comercial chinês destinado a revenda para lojas portuguesas e chinesas. São mais de seis mil metros quadrados ligados à produção têxtil, sapataria, bijuteria e acessórios». O Centro Ásia é composto por cerca de 60 lojas, abertas das 10h00 às 23h00. O descanso semanal ainda não foi instituído mas, caso se concretize, será apenas um dia da semana. Desta vez, a questão chinesa não está longe, afastada para o mundo distante dos empresários do têxtil ou de uma qualquer outra indústria de trabalho intensivo. Estamos a falar de um ataque à «competitividade» dos milhares de pequenos e médios comerciantes já estabelecidos. E diz ainda, na mesma notícia, o senhor Dawei, um dos comerciantes deste Centro, que «trabalhamos quase 24 horas por dia e ganhamos pouco, por isso as coisas são mais baratas. Se ganhássemos mais, não precisávamos de trabalhar mais do que quatro ou cinco horas por dia», acrescentando «que os chineses são pessoas pouco voltadas para gastos supérfluos e muito empenhadas no negócio: ganhamos para comer.» Estes comerciantes chineses chegam ao mercado com preços mais baixos e com horários mais atrevidos de funcionamento. Mas o mais sensível é que estes comerciantes estão no mercado com uma postura mental distinta da do vulgar empresário português. De facto, quando se passeia pelos centros comerciais ou os cinemas - por onde se arrasta a classe média portuguesa aos fins-de-semana - não se vêm chineses. Imagino que estejam a trabalhar ou em actividades de lazer dentro da sua própria comunidade imigrante. Seja como for, os chineses, pelo menos estes chineses, têm uma cultura própria muito distinta da mentalidade dominante da actual cultura ocidental. É uma atitude de vida que os orienta para o trabalho e não para o lazer. E sabe-se como a cultura do ócio é hoje preponderante no «moderno» estilo de vida ocidental.

Não se trata de rejeitar a imigração chinesa. Antes pelo contrário - a entrada no País e no mercado de uma cultura diferente, orientada para o trabalho estimula os demais portugueses a encontrarem novas fórmulas de organizarem os seus negócios. É uma concorrência, como todas as concorrências, criadora. Mas é uma concorrência que coloca em causa alguns dos postulados da sociedade que o mundo ocidental criou nas últimas décadas. Uma cultura orientada para o trabalho intensivo, sem prezar as «distracções» e o sem número de solicitações «modernas» com que todos nos entretemos. A concorrência do quadro chinês de pensamento e de actuação deixou de ser um tema que preocupe apenas os industriais do têxtil ou os teóricos do comércio internacional. Agora, ela está mesmo dentro das nossas portas. Não a podemos evitar nem sonhar com proteccionismos legislativos. E podemos repudiá-la ferozmente, argumentando que ela não respeita os nossos «valores», ou podemos aprender com ela, no sentido também de a sabermos absorver e, com isso, sabermos recriar a nossa própria sociedade.

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