Opinião
Traição à esquerda?
Muitos analistas têm-se debruçado sobre o eventual desfasamento entre a matriz ideológica do Governo e a sua praxis política. Há quem considere que, apesar de socialista, ...
Há quem considere que, apesar de socialista, o Executivo de José Sócrates governa claramente à direita, esquecendo, portanto, as suas raízes ideológicas e afastando-se da sua base social de apoio. Mas há também quem pense que o Governo se enquadra na chamada "esquerda moderna" (o próprio primeiro-ministro já usou esta expressão por diversas vezes) e que esta, malgrado algum pendor liberal, mantém vivos os princípios de justiça e solidariedade social, como é patente em alguns países nórdicos.
Sobre este assunto, creio que, independentemente do maior ou menor grau de pureza ideológica, o actual Governo e o seu primeiro-ministro, em particular, surgiram aos olhos dos portugueses como lídimos representantes de uma esquerda social-democrata. O executivo nasceu, convém lembrá-lo, da maior vitória eleitoral de sempre do PS, partido que nunca tinha alcançado uma maioria absoluta. Além disso, deu-se o caso de ter sucedido a um dos governos mais à direita dos 30 anos de Portugal democrático – e também dos mais mal amados.
Neste sentido, José Sócrates chegou ao poder com uma aura socialista vincada, mesmo sabendo-se de antemão que, pelo seu trajecto político (mais do que pelo seu pensamento ideológico, que poucos conhecem), o actual primeiro-ministro dificilmente iria governar de acordo com a mundividência das facções mais à esquerda do PS. Ora, foi precisamente esse capital político socialista que José Sócrates trouxe para o Governo que lhe permitiu cortar em vários direitos adquiridos, designadamente de cariz social, sem incendiar um país muito pouco habituado a perder privilégios e sempre relutante a reformas. Apesar de ter adoptado políticas próximas da direita liberal, o Executivo não foi ainda acusado de "neoliberalismo desenfreado" nem ninguém veio lembrar que "há mais vida para lá do défice".
Isto leva-me a pensar que, por muito paradoxal que pareça, um governo que tem a sua génese num partido de esquerda apresenta, à partida, melhores condições políticas para tomar decisões difíceis em áreas que, pelo menos teoricamente, lhe são mais próximas ou para as quais tem uma predisposição especial. Por outras palavras, se um executivo socialista lograr libertar-se do peso histórico e ideológico da sua matriz política, que conduz com frequência a posições conservadoras, poderá mais facilmente adoptar uma postura reformista em áreas tradicionalmente de esquerda – como a protecção social, a educação, a saúde, o emprego, a cultura, entre outras – do que um executivo de direita. Isto porque, tendo em conta todo um passado de combate ideológico, os governos de esquerda têm uma legitimidade acrescida para reformar as áreas referidas e beneficiam, por isso, de uma maior condescendência social.
A meu ver, esta situação verifica-se hoje com o actual Governo. Sendo um executivo geneticamente de esquerda, tem restringido alguns direitos sociais pretensamente adquiridos, assumido posições economicamente liberais e afrontado sectores socioprofissionais que constituem a sua base social de apoio. Dir-me-ão que está a pagar uma pesada factura por isso, com greves e manifestações a sucederem-se no país. Creio, contudo, que quem sai à rua para contestar o Governo fá-lo, basicamente, por questões corporativas específicas e não por razões políticas de fundo. Ou seja, apesar de tudo, estou convencido de que a generalidade da população tem consciência da situação grave em que o país se encontra e está disposta, em abstracto, a fazer os sacrifícios exigidos para inverter a situação. Em concreto, quando as medidas governamentais lhe tocam directamente, talvez já não seja bem assim?
Prosseguindo o raciocínio anterior, acrescentaria que talvez seja necessário um governo de direita para, nas áreas tradicionalmente ligadas a este sector ideológico, adoptar medidas verdadeiramente reformistas e acabar com prerrogativas injustificadas. Estou a pensar, por exemplo, no caso específico do tecido empresarial, onde são necessárias reformas que exijam das empresas mais capacidade de inovação, desenvolvimento tecnológico e vocação exportadora e menos lamúria, conformismo e subsídio-dependência. Ou seja, um executivo que, legitimado pela sua matriz ideológica, obrigue as empresas e os empresários a evoluírem no sentido da modernização, do empreendedorismo e da responsabilidade social, deixando a proverbial postura da "mão estendida" para o Estado.
O senão deste paradoxo político, quer para a esquerda, quer para a direita, é o risco do sentimento de traição. As bases sociais de apoio, e respectivos interesses corporativos, têm um limite relativamente amplo de condescendência para com os governos que ideologicamente lhe são próximos. Mas há sempre a possibilidade de, uma vez extremadas as posições, se gerar uma relação de despeito entre governos e potenciais apoiantes. É este, aliás, o perigo que impende sobre o Executivo de José Sócrates.