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Armindo Monteiro amonteiro@anje.pt 31 de Março de 2008 às 13:59

Bodas abençoadas pelo fisco

Depois de inúmeros relatos de abusos da administração fiscal, designadamente uma arrasadora auditoria da Provedoria de Justiça, o Governo começou a esboçar a intenção de inverter a sua política tributária. A mudança do discurso governamental nesta área co

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A mudança do discurso governamental nesta área coincidiu com o término da comissão de serviço do anterior Director-Geral dos Impostos, vindo acentuar-se, mais recentemente, com a substituição do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Para a opinião pública, o Executivo procurou passar a ideia de que a prioridade era agora a salvaguarda dos direitos e garantias dos contribuintes, por contraponto à política que vinha a ser seguida de combate cego à fraude e evasão fiscais, através da massificação do controlo informático sem critério.

Tanto o novo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Carlos Lobo, como o próprio ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, desdobraram-se em declarações públicas anunciando uma nova política fiscal, política essa alegadamente capaz de garantir um justo equilíbrio entre a colecta de impostos e a salvaguarda dos direitos dos contribuintes. O Governo parecia reconhecer a impossibilidade de continuar a aumentar a receita fiscal ao ritmo dos últimos anos, ao mesmo tempo que admitia a existência de práticas abusivas da máquina tributária. Por essa altura, as críticas à prepotência e arbitrariedade da actuação da administração fiscal tinham subido de tom e provinham de vários quadrantes – desde fiscalistas a empresários, passando por associações empresariais, consultoras e advogados. De resto, entre juristas e magistrados o incómodo era cada vez mais óbvio, sucedendo-se as acusações de que o modus operandi do fisco estava a empanturrar os tribunais com processos.

O Governo parecia de facto ter arrepiado caminho, deixando para trás um conjunto de práticas lesivas para o contribuinte, sobretudo ao nível das penhoras e do sistema de execuções fiscais em geral. Mas eis que, na passada semana, o País é sobressaltado por mais uma intervenção sui generis da administração fiscal, desta feita com contornos risíveis. A Direcção-Geral dos Impostos (DGCI) enviou cartas a contribuintes recém-casados solicitando que estes respondessem a um vasto questionário sobre a sua boda, o que incluía informação tão minuciosa como o número de convidados (adultos e crianças) e o valor cobrado por cada um deles, bem como – pasme-se – a origem do vestido de noiva (se foi oferecido e, se sim, por quem e quanto pagou o oferente). Mais: o fisco exigia ainda o envio de documentos (facturas e recibos) que comprovassem o pagamento dos serviços relativos ao casamento. Estranha-se que não tenha solicitado as fotos e os vídeos do copo-de-água para melhor documentar e comprovar as declarações?

Já agora, por que não ousaram indagar, por exemplo, se os noivos foram saudados com arroz ou confetis, produtos que têm taxas de IVA muito diferentes? É que o inquérito da DGCI presta-se a toda a sorte de perguntas ridículas, sendo, por isso mesmo, revelador do despudor com que o Estado trata os contribuintes. De tanto perguntar, a administração fiscal arrisca-se a não obter nenhuma resposta fundamental. O essencial perde-se no espírito burocrático, inquiridor e controlador do Estado.

Naturalmente que não contesto a necessidade de controlo fiscal dos serviços prestados por empresas de catering, fotógrafos, floristas, costureiras, entre outros. Porém, seguindo esta lógica, os contribuintes seriam no limite obrigados a guardar, por exemplo, todas as facturas de restaurantes ou recibos de hipermercados, se a máquina fiscal, não logrando contabilizar devidamente os respectivos serviços, necessitasse de exercer o seu controlo através dos consumidores. É isto que acontece no caso dos casamentos, daqui resultando uma inversão do ónus fiscal. São os requerentes dos serviços que têm de fornecer a informação e a documentação relativa aos mesmos e já não, como seria razoável, os prestadores de serviços, cuja conduta fiscal está a ser averiguada. Imagine-se, por absurdo, o ridículo em que se cairia se estivesse em investigação fiscal o sector dos contraceptivos...

Este tipo de práticas abusivas pode motivar um retrocesso na evolução fiscal que o País conheceu nos últimos anos. Agora que a fraude e a evasão fiscais não só são mais controladas como já merecem reprovação social, o Governo está a exasperar os contribuintes cumpridores com abusos como o relatado na semana passada. O pedido de informação e documentação sobre os casamentos parece, à primeira vista, apenas caricato. Todavia, pelo que configura de subalternização do contribuinte face ao Estado e de violação da privacidade dos cidadãos, não pode deixar de ser considerado perigoso. É que, com medidas deste género, gera-se um efeito perverso: o contribuinte é motivado a não cumprir as suas obrigações fiscais, por não vislumbrar no Estado qualquer resquício de autoridade moral ou noção de decoro.

De resto, a questão dos casamentos entronca num dos principais erros da política fiscal portuguesa: a curta margem de benefícios fiscais para os contribuintes cumpridores. Seria mais estimulante para os recém-casados exigir facturas ou recibos aos prestadores de serviços se, com isso, usufruíssem de regalias ao nível dos impostos. O que acontece nos regimes fiscais mais evoluídos é que, por via das deduções à colecta, há sempre contribuintes com vantagens em entrar no sistema e que, por esse motivo, o fazem plenamente. Logo, a máquina fiscal tem acesso a mais dados, os quais, uma vez cruzados, permitem um maior controlo da contabilidade de fornecedores e clientes.

Esperemos, pois, que o insólito caso dos casamentos tenha sido apenas um excesso de zelo da DGCI e que, de facto, o Governo esteja disposto a assumir uma política fiscal que garanta equidade e respeito pelos direitos dos contribuintes. Por ora, há que louvar a descida da taxa máxima do IVA para 20%, medida de efeitos previsivelmente exíguos, mas que é um sinal de confiança para os agentes económicos.

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