Opinião
Quem pode desprezar os americanos?
Os discípulos de Lacan insistiam muito sobre o facto do ensinamento do mestre afirmar que uma pergunta já pressupõe a resposta. Sou grande admirador das fórmulas justas, não tanto por serem fórmulas mas por serem justas.
Mas desconfio de afirmações universais temerárias. A minha objecção a esta ideia é muito simples. Estando alguém aflito para ir à casa de banho, se já pressupõe a resposta não deveria perguntar onde ela está. De um só golpe incomodaria os outros e exporia as suas necessidades fisiológicas sem necessidade.
A pergunta que hoje faço poderia para muitos por isso pressupor uma resposta, a de que existem pelo menos algumas pessoas que podem desprezar os americanos. Não é assim logicamente. A resposta poderia ser: ninguém. Mas em honestidade tenho de dizer que essa não é a boa resposta. O que há que definir é quem pode, e quem não pode, desprezar os americanos.
A primeira imagem europeia da América do Norte é apenas geográfica e quando muito etnológica. É um território, e existem lá índios. Só surge verdadeiramente uma primeira imagem europeia dos americanos em França na altura da Guerra de Independência.
Embora outros países sentissem empatia pela Revolução Americana, como a Holanda, fruto em grande medida de um sentimento anti-britânico, a primeira imagem, heróica, positiva dos americanos deve-se... aos franceses. Os franceses cometeram aliás mais duas imensas maldades em relação aos americanos, que foi a de lhes terem dado os principais símbolos, o Capitólio, feito por um arquitecto francês de segunda categoria e a Estátua da Liberdade, um dos maiores monumentos ao mau gosto que se pode imaginar. Exactamente os monumentos que mais embevecem os parolos europeus.
A segunda imagem dos americanos surge depois da Revolução Francesa, entre fins do século XVIII e inícios do século XIX.
Talleyrand e Alexis de Tocqueville, dois aristocratas, franceses mais uma vez, profetizam (existe tal coisa na História) a grandeza futura dos Estados Unidos, os perigos que isso poderá trazer para a Europa a partir do momento em que eles pretendessem intervir na política europeia, a grandeza do modelo político americano, mas igualmente a planura de uma sociedade de matriz democrática. A segunda imagem é menos romântica, admirativa sem dúvida, mas prudente.
Ao longo do século XIX formou-se uma nova imagem dos Estados Unidos, em que a ideia de aventura e território selvagem, terra de oportunidades, espírito parolo e exotismo se misturam. Para essa imagem contribuíram em doses diversas os franceses, ingleses, alemães e italianos. Mas mais uma vez se tem de reconhecer aqui o fascínio americano pelos franceses. Quem conhece hotéis de luxo americanos sabe onde foram buscar o gosto: aos bordéis parisienses do Segundo Império, os locais mais finos que podiam visitar na Europa de então.
A verdade é que a imagem de base dos Estados Unidos que ainda hoje em dia constitui o pano de fundo é a quarta fase desta visão, que se formou Entre Guerras. Em parte franceses e ingleses, algumas pessoas da Europa Central, mas sobretudo pessoas de cultura alemã vão aos Estados Unidos. Freud, Jung, Heisenberg entre muitos outros vão fazer conferências americanas e trazem de lá uma certa ideia dos Estados Unidos. Bach usado como música ambiente, que chocou Jung, a aceitação da física quântica por razões meramente pragmáticas que deixou Heisenberg perplexo, uma universidade que desconhecia os estudos orientais. O intelectual que ia para os Estados Unidos sabia obviamente alemão, francês, italiano, grego e latim, mas de inglês tinha na melhor das hipóteses alguns rudimentos, porque a ninguém sensato lhe passaria pela cabeça entender o inglês como língua fundamental de cultura. Jung sintetizou a coisa dizendo que o americano é branco de corpo, se move como um negro e tem alma de índio.
É evidente que para o europeu realmente culto de entre guerras, que conhecia bem os seus clássicos, que tinha sido formado pela musica erudita e sabia em geral tocar competentemente um instrumento, conhecia bem as línguas mortas fundamentais e as principais línguas da cultura europeia, a imagem de um povo monoglota, com um verniz muito superficial de cultura, sem noção de pertinência nem do sagrado da cultura só poderia provocar algum desprezo e por vezes compaixão. É evidente que para o aristocrata europeu, criatura forjada ao longo dos milénios, o modo de se mexer, de falar, de estar, de pensar e de sentir do americano, criatura que se formou sem paradigma superior nem noção de transcendência perene, apenas lhe poderia repugnar, embora por vezes tenha ficado fascinado com as sua contas bancárias.
Mas é também desta época a expansão do jazz e dos filmes americanos na Europa. A dignificação intelectual da cultura americana, do jazz, da sua música, da sua literatura é em grande medida um facto francês, embora também alemão e inglês.
O pano de fundo apenas assim fica justamente enunciado. Antes do fim da I Guerra Mundial a imagem dos Estados Unidos era esparsa, anedótica, pouco relevante. A primeira imagem intensa, corrente, é de desprezo, e mesmo quando é de admiração, fascina-se exactamente pelo que o americano despreza: o jazz, os filmes e a literatura. Em certo sentido este fascínio é mais uma forma de desprezo, como quem diz: tontos, que nem percebem o que de melhor têm.
Dito isto, podemos ver quem não pode desprezar os americanos. O parolo sem modos, por mais ministro ou presidente que seja. O burguesote, por mais instituições que dirija. Quem não tem modos, e quem despreza os modos, quem despreza cultura da etiqueta europeia, não está autorizado a desprezar os americanos.
O homem inculto, o que não aprendeu latim e grego, matemática, filosofia, teologia. Que sabe ele de mais difícil que a cultura americana não possa fornecer? Os Estados Unidos produzem livros de gestão pelo menos tão bons quanto os europeus e de vez em quando peças de erudição do mesmo nível.
O que goza o americano por amar a sua bandeira e o seu país, porque só mostra ignorância. O grego e o romano amavam a sua cidade e o seu império e não eram totalmente tontos. Esse amor é fonte de poder e coesão. Por isso quem tem a presunção de desprezar o americano por esses factos é apenas tão parolo quanto eles e com o defeito de ser menos eficaz. Pior ainda o que cospe sobre a bandeira americana porque é apenas um grosseiro que não respeita os sentimentos dos outros.
O que goza com os americanos por não saberem onde é Lisboa ou Viena quando os mesmos ignoram qual é a capital do Minnesotta ou, pior ainda ignoram onde sejam a Vendeia ou Salzburgo. É evidente que a relevância histórica de Viena ou Lisboa são maiores, mas esquecem-se que se sabem onde são é por um fenómeno de mera proximidade e não por selecção com critério.
Não pode igualmente desprezar o americano o que se ri das suas convicções religiosas profundas, porque em geral é o mesmo que vai a países exóticos e fica fascinado com estas mesmas convicções. Em geral o que não perdoa aos americanos é o facto de serem cristãos convictos, o que é típico de uma pequena burguesia que se julga liberta da sua pequenez libertando-se de uma religião que nunca compreendeu. Apenas mostra mais uma vez que é parolo assim fazendo.
Não pode gozar o americano pelo seu espírito messiânico em relação à liberdade e à democracia (apego é certo muitas vezes retórico, mas igualmente estratégico e substantivo noutros casos) na medida em que em geral é o mesmo pretensioso que quer impor os direitos do homem por toda a parte do mundo. Apenas mostra a sua irritação com o facto de ter menos poder que eles.
Não pode desprezar o americano quem contesta o seu poder, nomeadamente militar, na medida em que em geral é o mesmo que não quer que a Europa tenha poder e portanto oferece de bandeja esse mesmo poder aos Estados Unidos.
Quem pode desprezar o americano? O aristocrata e o homem culto, espécies em vias de desaparição na Europa. Os restantes que o respeitem e ao seu poder e tenham o bom senso de perceber que a única forma que têm de ser respeitados por ele é permitir que a Europa tenha poder. Porque existe um desprezo legítimo, pela grosseria, pela incultura, pela pequenez. Mas para isso é preciso ter a certeza de não estarmos maculados por essas indignidades.