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Opinião
26 de Outubro de 2005 às 13:59

Ponto de viragem

Há anos que o capitalismo mudou, que a economia mundial se vem transformando e que os Países europeus , apesar das vicissitudes políticas de uma União Económica e Monetária, vêm experimentando, com desigual sucesso, processos de reforma do Estado e das su

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Portugal teimava, ate há pouco, em não mudar. É verdade que a elaboração do pensamento para as necessárias reformas vagueava entre propostas de ruptura radical, mas inconsequente, da direita e a defesa intransigente, quase irracional, da manutenção do status quo por parte da extrema esquerda. Convenhamos que propor uma mudança realista é um exercício ambicioso, pensar essa mudança à esquerda, ainda mais, sobretudo numa situação de estagnação económica prolongada.

O XVII Governo Constitucional, ousou começar a mudança, propondo um Orçamento de Estado para 2006 que é um importante documento político de viragem das práticas orçamentais seguidas no pós 25 de Abril. Houve, no passado, situações semelhantes, os acordos do FMI, mas o contexto económico era muito diferente e os instrumentos de política de que o Estado dispunha mais numerosos e mais diversificados. Uma política de rigor e de distribuição de sacrifícios por uma grande parte da população não é uma política popular, nem é fácil de explicar quando continua a ser, política e comunicacionalmente correcto, dizer mal, não tanto das acções mas, sobretudo, das supostas intenções do Governo.
 
A proposta de Orçamento de Estado para 2006 assinala uma viragem clara em relação ao passado, encerrando aspectos manifestamente positivos. O primeiro é o de readquirir a credibilidade e a responsabilidade do Estado em matéria de gestão pública, características que haviam sofrido uma grande erosão nas últimas décadas. Desde cenários macroeconómicos irrealistas passando pelas mais variadas formas de opacidade contabilística até procedimentos de sub-orçamentação sistemática, tudo foi experimentado, culminando, em 2004, com um Orçamento que deverá perdurar como caso ilustrativo de como não se deve gerir a coisa pública. Um segundo aspecto, também relevante, é de apontar um rumo coerente e gradual para reformas nos vários sectores do Estado central, orientadas, desde já, para ganhos de eficiência na área das receitas e de eficácia no sector da despesa. É compreensível que reformas mais profundas só possam ser encetadas quando as contas estiverem certas, e isto tanto é válido para a diminuição da carga fiscal, como para a racionalização dos procedimentos e dos gastos nas áreas da saúde, da educação, da gestão territorial e da máquina administrativa central.

Não se pode pedir que o Orçamento de Estado para 2006 inclua medidas que resolvam, no imediato, os problemas estruturais da economia portuguesa: baixa competitividade dos produtos e serviços nacionais e incapacidade do sector privado em manter uma taxa sustentada de crescimento do investimento. Fica, neste domínio, como terceira nota igualmente positiva, o facto do investimento público apresentar já um grau de selectividade que não era habitual: as verbas destinadas à Sociedade de Informação e Governo Electrónico, à Investigação Tecnológica e Científica, ao Programa de Transportes e à Modernização da Economia representam cerca de três quartos do PIDDAC.

Executar este Orçamento não vai ser fácil, nem do ponto de vista político nem financeiro. Politicamente, ao Governo não basta ter razão e determinação, virtudes que lhe são reconhecidas, é também preciso ter sorte e esta, habitualmente, sorri aos audazes. Do ponto de vista financeiro, a execução deste Orçamento é um exercício no fio da navalha: as folgas têm de ser ganhas desde o dia da sua aprovação, tanto na área da receita como na da despesa. O exemplo recente na recuperação de receita fiscal e de contribuições para a Segurança Social, mais quatro por cento que em 2004, estabelece um patamar novo, mas ainda há espaço para o alargamento da base tributável. A contenção da despesa depende da rápida implantação de medidas de reforma e racionalização da administração pública , por forma a que, ainda em 2006, se possam sentir os seus efeitos financeiros, sobretudo porque a pressão das despesas sociais, por mais controlo que se exerça, vai continuar por razões muito objectivas.

Um orçamento não pode ser um mero exercício contabilístico de sobe e desce. Este não o é na medida em que anuncia o necessário ponto de viragem da política orçamental e faz antever que, afinal de contas, poderá haver vida para além do défice.

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