Opinião
Incentivos privados e valores de interesse público
A reforma do sector público em Portugal tem sido um assunto recorrente da vida política nacional. Apesar de ter constado do programa de sucessivos governos e ser objecto de várias opiniões e, ...
Apesar de ter constado do programa de sucessivos governos e ser objecto de várias opiniões e, mesmo, de alguns tratados, a reforma do Estado e, em particular, a da Administração Pública têm encontrado muitas dificuldades, tanto do ponto de vista da sua concepção, como de uma estratégia para a sua aplicação. O modo de abordagem escolhido pelo actual Governo parece ser, até ao momento, o mais consequente. Em vez de começar pela concepção de um programa global de reforma, o Governo optou por um profundo movimento de simplificação e agilização dos actos administrativos e pela criação de uma relação mais directa entre a administração e o utente, tirando partido das novas teconologias de informação e de comunicação. Após um ano, os resultados deste processo são já muito importantes e espera-se que novas medidas, com a mesmo fim, permitam, a prazo, atingir um elevado grau de racionalização dos actos e processos administrativos.
Esta etapa não esgota a reestruturação do sector público administrativo mas, cada vez mais, se torna evidente que o seu sucesso é fundamental para abordar com profundidade os aspectos mais decisivos dessa reforma.
No momento em que o Governo se prepara para anunciar uma decisão política sobre o Relatório da Comissão Técnica, prevista na RCM nº 124 de 4 de Agosto de 2005, é oportuno reflectir, na óptica da análise económica, sobre os aspectos instrumentais da organização e gestão públicas que, naturalmente, não poderão deixar de estar presentes na nova etapa da reforma.
Os métodos instrumentais incluem, além da opção por formas organizacionais distintas - burocracia versus autonomia de gestão - a escolha do sistema de incentivos para um melhor desempenho. Estes dois aspectos estão interligados e são fundamentais para caracterizar a reforma, sendo objecto de grande discussão entre os promotores das reformas na administração pública.
No que se refere ao primeiro aspecto, e para simplificar, trata-se de saber se a forma organizacional mais eficiente e eficaz é optar por um sistema dotado de hierarquia, fortemente centralizado e servido por um corpo de funcionários possuidor de um estatuto próprio ou se, ao contrário, a gestão pode ser organizada em estruturas dotadas de autonomia, semelhante à que se encontra nas organizações privadas. Do ponto de vista prático, embora simplificador, as direcções gerais actuais aproximar-se-iam do modelo burocrático, enquanto os institutos públicos estariam mais próximos da autonomia de gestão, ou do modelo da agência para usar um conceito mais técnico.
No que se refere ao segundo aspecto - o problema dos incentivos - a questão é de saber se uma reforma deve, para além da escolha da forma organizacional, incidir, também ou sobretudo, sobre um sistema de incentivos favorável à melhoria do desempenho. A introdução de incentivos esteve durante muito tempo ausente das reformas, partindo-se do princípio que as motivações no desempenho por parte do funcionário público estariam para além das questões financeiras. O carácter estatutário da profissão, prevendo, entre outras questões, a remuneração, a progressão na carreira e, sobretudo, a segurança de emprego, seria suficiente. Quanto a novos incentivos a introduzir, os mais significativos seriam os que se relacionam, por um lado, com formas de compensação salarial baseada no mérito individual ou de grupo e com a ausência de segurança no emprego e, por outro lado, com normas de gestão favoráveis ao aumento da competição, tanto no interior das instituições como na prestação dos serviços e no mercado do emprego.
Resumindo, a questão é de saber se as formas organizacionais e os instrumentos da gestão privada podem ser aplicados, com sucesso, à administração pública.
Não sendo conhecido, neste momento, o Relatório da Comissão Técnica, não é possível comentar as propostas e o grau de aceitação dos princípios acima referidos. São, no entanto, públicos alguns resultados da avaliação das reformas introduzidas na Europa e, em particular, no Reino Unido, inspiradas nestes novos instrumentos.
As conclusões desses estudos deixam a questão em aberto, mas com maiores interrogações no que respeita à introdução de incentivos financeiros. Para além da dificuldade óbvia em conceber esquemas de incentivos em situações em que o desempenho não pode ser medido, ou em que o funcionário executa uma pluralidade das tarefas, os estudos mostram que os funcionários reagem aos incentivos de forma muito diversa e, por vezes até, em contradição com os objectivos da organização. O mesmo tipo de incentivos, financeiros ou promoções, provoca com frequência efeitos diferentes consoante a instituição é gerida de forma tradicional ou de forma inovadora. Por fim, os funcionários públicos apresentam ter motivações que vão para além dos rendimentos que auferem, em especial, nos sectores da saúde, da educação e da protecção social.
Estes resultados, contraditórios com o pressuposto que gerir a coisa pública e o privado relevam da mesma lógica motivacional, reforçam a ideia que, para além dos incentivos privados, existe um sistema de valores de interesse público que não pode ser ignorado em qualquer reforma da Administração Pública.