Opinião
O público e o privado
Num mercado sem anonimato e sem concorrência e onde os recursos são escassos, a luta pela partilha do excedente e pela busca de rendas assume um papel dramático em que todos os argumentos são válidos.
As peripécias recentes dos casos GALP e EDP colocaram, uma vez mais, a questão do público e do privado na agenda política nacional. Ainda não há muito tempo, a análise do Tribunal de Contas sobre as Parcerias Público Privadas nas auto-estradas e na saúde e a contestação da Alta velocidade e do Novo Aeroporto de Lisboa suscitaram opiniões diversas sobre o âmbito das esferas pública e privada na economia e, também, sobre a natureza das relações formais e informais entre agentes públicos e privados. Esta discussão é, igualmente, actual na Europa onde, após a vaga de liberalização, continuam a surgir interrogações sobre o papel do público e do privado em economias mistas, o que faz supor que a questão não está definitivamente consolidada. Porém, ao contrário do que acontece lá fora, onde as posições são fundamentadas e acessíveis ao grande público, entre nós, a discussão pauta-se, na generalidade, por um excesso de retórica, por argumentos supostamente especializados e, não raras vezes, por meias verdades.
A história, ainda em curso, dos casos da GALP e da EDP, para lá dos faits divers, é ilustrativa desta discussão a que junta, ainda, o velho sonho de manter os centros de decisão dos sectores estratégicos da economia em mãos nacionais. Será que faz sentido, no século XXI, alimentar, ainda, o desígnio do capitalismo nacional?
Para responder a esta interrogação importa abordar, pelo menos, duas questões. A primeira é de saber se, numa economia que integra um mercado único, faz sentido falar de sectores estratégicos e, se sim, qual o seu conteúdo.? Numa segunda questão, se a resposta for afirmativa, importa discutir a relação do Estado com as empresas desses sectores, num quadro compatível com a lei da União Europeia.
Se partirmos do princípio que sector estratégico é aquele cuja importância económica e ou social é tão significativa para o País e para os seus cidadãos que adquire uma dimensão política , a ponto de serem prevenidas quaisquer falhas de mercado, então não parecem restar dúvidas que actividades como o abastecimento e a distribuição de água, o abastecimento do País em combustíveis, as redes de distribuição de electricidade e de gás, os sistemas de transporte estruturantes, como aeroportos e portos, a rede ferroviária, entre outros, mas também os sectores sociais constituem actividades estratégicas. Estas actividades têm características tanto de infra-estruturas geradores de externalidades positivas, como de fornecedoras de bens e serviços, em ambiente de reduzida concorrência, com obrigações de serviço público ou de interesse económico geral. Independentemente do país e do regime económico estes sectores estão, por razões de eficiência e de justiça social, sujeitos a uma intervenção pública.
A segunda questão refere-se à natureza da intervenção do Estado nos sectores estratégicos. Deve o Estado manter um verdadeiro poder de decisão, directo através da propriedade e gestão das empresas ou indirecto através de contratos de concessão e do processo regulatório, no caso da propriedade ou a gestão se pautarem por critérios de mercado?
A União Europeia não obriga a que essas indústrias sejam privadas ou de gestão privada, no entanto, obriga a que, independentemente da sua propriedade, estejam sujeitas ao direito europeu da concorrência. Perante este quadro o Estado tem duas saídas: ou mantém o controlo accionista das empresas dos sectores estratégicos, responsabilizando-se pela sua gestão ou, então, privatiza ou concessiona os serviços ao sector privado segundo as normas da contratação pública vigentes na U.E.. Subsistem, porém, dois riscos: o controlo público gera muitas vezes problemas de ineficiência e a privatização, em ambiente concorrencial, pode colocar as empresas sob domínio do capital estrangeiro.
Naturalmente, qualquer Estado e também o Português gostariam de receber o dinheiro da privatização e ou da concessão e continuar a mandar nas empresas, seja mantendo uma posição accionista minoritária, mas suficientemente importante, seja recorrendo à golden share. Como estes artifícios não são sustentáveis, a solução desejada estaria no controlo destes sectores por capitalistas nacionais, patriotas e eficientes.
Esta solução poderia ser viável, entre nós, se os empresários portugueses se transformassem em empreendedores competitivos, abdicando da obtenção de rendas e ou da busca de mais valias no curto prazo. Ora, a experiência recente ensina que milagres deste teor não acontecem com frequência.
Assim, por muito que custe aos bem intencionados, se é que os há, num mercado concorrencial e com um sistema financeiro liberalizado, o dilema que o Estado enfrenta não admite ilusões: manter o controlo, através da propriedade pública, total ou maioritária, das empresas estratégicas ou, então, optar pela privatização sabendo que a lógica empresarial se sobrepõe, sempre, a sentimentos nacionais.
É este o fundo da questão, que faz correr tanta tinta e que, para além de posições éticas e ideológicas, não consegue esconder negócios chorudos, dificilmente disfarçáveis numa sociedade onde os agentes económicos se conhecem pelo nome ou, mesmo, pelo restaurante que frequentam. Num mercado sem anonimato e sem concorrência e onde os recursos são escassos, a luta pela partilha do excedente e pela busca de rendas assume um papel dramático em que todos os argumentos são válidos, em que o mais visível é tirar do armário o fantasma castelhano, agora disfarçado em espanhol.