Opinião
Odorico Paraguaçu
Nos anos oitenta, num período em que não havia televisão privada (devido à forte oposição política a uma liberalização desse sector), quase toda a população era "obrigada" a assistir à mesma programação.
Um dos mais populares programas dessa era foi a novela "O Bem Amado", baseada na obra de Dias Gomes. A popularidade da obra conduziu à realização de um filme em 2010. O protagonista era o Prefeito da cidade de Sucupira (ou, pelo menos, assim mo relembra a wikipedia), o impagável Odorico Paraguaçu. Impressionado pela necessidade de enviar um morto para uma terra vizinha devido à ausência de cemitério na localidade, Odorico concorre a Prefeito com uma promessa: a de construir um. Uma vez eleito, cumpre-a. O problema é que depois de acabar a obra ninguém morria. Para a inauguração necessitava de um morto. Mas ninguém morria. Contratou um "assassino profissional" para matar alguém. Mas nem assim.
Num dia em que já por cá andava a dita troika, o inacreditável aconteceu: um conjunto de Odoricos foram inaugurar o novo aeroporto de Beja. Havia, claro, um problema: enquanto em Sucupira faltava um morto, em Beja faltavam as licenças e um avião para a inauguração. O "jagunço" aqui utilizado foi um avião cabo-verdiano que voou de Lisboa para Beja, sem passageiros, aí apanhando um grupo de 27 turistas de tarifa reduzida e uma "missão empresarial" com 40 elementos. Um canal de televisão perguntou a um passageiro se estava contente por agora poder voar mais próximo de casa. Este respondeu morar em Cascais e só ali estar por ser a única forma de obter a tarifa especial. O repórter acrescentou, depois, que o próximo voo se encontra previsto para o mês seguinte. Vai-se seguir uma auto-estrada até Sines. Os Odoricos garantiram que estas infra-estruturas iriam levar o desenvolvimento ao interior do Alentejo. Outros recordaram que Beja está apenas a duas horas de Lisboa e não muito longe do Algarve. Juro que não se riram. Mas quem se quiser rir um pouco com uma experiência vizinha bastará ver as estatísticas de utilização do também novo aeroporto de Ciudad Real, uma espécie de Beja espanhola, para onde duas low-cost fazem voos… de vez em quando, sendo fortemente subsidiadas para os fazer. Para dia 2, segunda-feira, estão previstos dois voos (um avião).
Confesso estar farto de, através dos meus impostos, pagar infra-estruturas públicas e ajudas a investimentos privados que "vão levar o desenvolvimento" a todo o lado, para depois constatar que o País não só não cresceu nos últimos dez anos, como será o que menos crescerá em todo o Mundo, de acordo com a previsão do FMI. Se dúvidas tivesse de que a maioria do investimento nacional não desenvolveu coisa nenhuma, a falta de crescimento efectivo acabava por as eliminar. Os nossos Odoricos fazem obra pública (e financiam alguma privada) inútil, deixando aos contribuintes o custo de a pagar, mais o correspondente custo financeiro. A única coisa que, de facto, se desenvolve é a conta bancária dos que a constroem, como empreiteiros ou concessionários das correspondentes PPP's. Paralelamente, o País, esse presuntivo beneficiário, definha.
Nada tenho, enquanto economista, contra o investimento público. Se este tiver efeitos reprodutivos, acabará por gerar crescimento económico mais do que suficiente para que o correspondente aumento de receita fiscal pague os juros da dívida contraída para o financiar. Mas no caso português, o sobre-investimento em estradas e outras asneiras está a ser acompanhado pela ausência de crescimento. O que significa que não está a ter quaisquer efeitos reprodutivos. Basta ver a baixa utilização de muitos. Portanto, irá caber aos contribuintes suportar os respectivos encargos, sem daí retirarem qualquer benefício económico. Ou seja, o nosso problema não está no facto de se fazer investimento público, mas antes na qualidade deste. Por isso, conviria que aqueles que politicamente fingem defender o Estado Social expliquem aos portugueses que, mais investimento público inútil hoje, implica inevitavelmente menos apoio na saúde e pensões de reforma no futuro (próximo). Pode não ser o que a ideologia diz, mas é tão simples quanto isto.
Recordo-me de, numa dada ocasião, ouvir um antigo ministro das Obras Públicas, que por acaso nada tem a ver com o actual partido de Governo, garantir saber fazer obras públicas sem gastar dinheiro. Com um enorme sorriso de auto-satisfação explicou: "em Project finance!". Gostava de o ouvir dizer isso em público aos portugueses que pagam acima de um bilião por ano aos concessionários dessas PPP's que "não custam dinheiro". E quando lhe perguntaram porque não se investia em caminhos-de-ferro, numa altura em que já era visível a necessidade de uma ligação à Europa, para mercadorias, em bitola europeia, explicou: "porque isso não dá votos!". Aí está. E, em troca de votos, ganhamos deficit e dívida pública. E falta de crescimento. Pelo menos, apreciei a honestidade da resposta.
No episódio final de "O Bem Amado", Odorico morre e o cemitério é finalmente inaugurado. Mas no caso do investimento público português, o morto que inaugura o cemitério não é nenhum político. Aí, quem vai a enterrar é o futuro do País.
Professor da Universidade Nova de Lisboa
Assina esta coluna quinzenalmente à terça-feira
Num dia em que já por cá andava a dita troika, o inacreditável aconteceu: um conjunto de Odoricos foram inaugurar o novo aeroporto de Beja. Havia, claro, um problema: enquanto em Sucupira faltava um morto, em Beja faltavam as licenças e um avião para a inauguração. O "jagunço" aqui utilizado foi um avião cabo-verdiano que voou de Lisboa para Beja, sem passageiros, aí apanhando um grupo de 27 turistas de tarifa reduzida e uma "missão empresarial" com 40 elementos. Um canal de televisão perguntou a um passageiro se estava contente por agora poder voar mais próximo de casa. Este respondeu morar em Cascais e só ali estar por ser a única forma de obter a tarifa especial. O repórter acrescentou, depois, que o próximo voo se encontra previsto para o mês seguinte. Vai-se seguir uma auto-estrada até Sines. Os Odoricos garantiram que estas infra-estruturas iriam levar o desenvolvimento ao interior do Alentejo. Outros recordaram que Beja está apenas a duas horas de Lisboa e não muito longe do Algarve. Juro que não se riram. Mas quem se quiser rir um pouco com uma experiência vizinha bastará ver as estatísticas de utilização do também novo aeroporto de Ciudad Real, uma espécie de Beja espanhola, para onde duas low-cost fazem voos… de vez em quando, sendo fortemente subsidiadas para os fazer. Para dia 2, segunda-feira, estão previstos dois voos (um avião).
Nada tenho, enquanto economista, contra o investimento público. Se este tiver efeitos reprodutivos, acabará por gerar crescimento económico mais do que suficiente para que o correspondente aumento de receita fiscal pague os juros da dívida contraída para o financiar. Mas no caso português, o sobre-investimento em estradas e outras asneiras está a ser acompanhado pela ausência de crescimento. O que significa que não está a ter quaisquer efeitos reprodutivos. Basta ver a baixa utilização de muitos. Portanto, irá caber aos contribuintes suportar os respectivos encargos, sem daí retirarem qualquer benefício económico. Ou seja, o nosso problema não está no facto de se fazer investimento público, mas antes na qualidade deste. Por isso, conviria que aqueles que politicamente fingem defender o Estado Social expliquem aos portugueses que, mais investimento público inútil hoje, implica inevitavelmente menos apoio na saúde e pensões de reforma no futuro (próximo). Pode não ser o que a ideologia diz, mas é tão simples quanto isto.
Recordo-me de, numa dada ocasião, ouvir um antigo ministro das Obras Públicas, que por acaso nada tem a ver com o actual partido de Governo, garantir saber fazer obras públicas sem gastar dinheiro. Com um enorme sorriso de auto-satisfação explicou: "em Project finance!". Gostava de o ouvir dizer isso em público aos portugueses que pagam acima de um bilião por ano aos concessionários dessas PPP's que "não custam dinheiro". E quando lhe perguntaram porque não se investia em caminhos-de-ferro, numa altura em que já era visível a necessidade de uma ligação à Europa, para mercadorias, em bitola europeia, explicou: "porque isso não dá votos!". Aí está. E, em troca de votos, ganhamos deficit e dívida pública. E falta de crescimento. Pelo menos, apreciei a honestidade da resposta.
No episódio final de "O Bem Amado", Odorico morre e o cemitério é finalmente inaugurado. Mas no caso do investimento público português, o morto que inaugura o cemitério não é nenhum político. Aí, quem vai a enterrar é o futuro do País.
Professor da Universidade Nova de Lisboa
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