Opinião
Demagogia hipotecária
Uma decisão de um Tribunal e uma proposta legislativa recente puseram sobre a mesa uma possibilidade de mudança no regime do crédito hipotecário: a possibilidade de a entrega ao credor do imóvel hipotecado ser suficiente para extinguir todas as obrigações financeiras do devedor constituídas no âmbito desse empréstimo.
Uma decisão de um Tribunal e uma proposta legislativa recente puseram sobre a mesa uma possibilidade de mudança no regime do crédito hipotecário: a possibilidade de a entrega ao credor do imóvel hipotecado ser suficiente para extinguir todas as obrigações financeiras do devedor constituídas no âmbito desse empréstimo. Proponho-me tratar aqui esse tema num puro plano de técnica financeira.
No modelo adoptado na Europa, o devedor contrai um empréstimo, ficando com a obrigação de cumprir com todos os pagamentos contratados com o banco. O imóvel é dado como garantia. Em caso de incumprimento esta é executada. O imóvel é tomado pelo credor, o qual o tentará alienar como forma de recuperar o montante em dívida. Caso dessa venda resulte quantia inferior a este, o credor poderá tentar penhorar outros bens, incluindo os rendimentos futuros do devedor. Aqui, o risco do banco assenta sobretudo na estabilidade dos rendimentos daquele. Situações de desemprego, problemas de carreira, divórcio ou doenças afectam mais o banco do que as flutuações do mercado imobiliário. O preço e condições fixados neste produto têm em conta, precisamente, estas características de risco.
O produto que agora se propõe, seguindo o modelo normalmente associado aos EUA, tem características diferentes. Como a entrega do imóvel extingue a dívida para com o credor, a experiência demonstra que os devedores passam a ter um motivo adicional para entrar em incumprimento: as flutuações do mercado imobiliário. Se a casa vale menos do que o capital em dívida ao banco, é economicamente vantajoso incumprir no empréstimo. A situação recente dos EUA onde o início da crise "subprime" provocou uma quebra de preços do imobiliário que levou grandes massas de devedores solventes a entregar as casas ao banco (que por sua vez as vendia, acentuando a quebra de preços), assim o demonstra. Assim, este modelo contratual contribuiu significativamente para o acentuar das crises hipotecária e bancária dos EUA, em 2007/08, com as consequentes externalidades negativas daí decorrentes e que ainda hoje lamentamos. Convém, portanto, ter em conta, que a adopção desse modelo aumentaria, inevitavelmente, as condições de risco do mercado imobiliário português.
Um produto com as características de risco do agora proposto tem de ser vendido, portanto, de forma diferente daquele que hoje conhecemos. A maior exposição dos bancos ao risco de preço imobiliário que este tipo de contratos acarreta implicaria, inevitavelmente, um aumento das taxas de juro a cobrar. Nesta era pós-"subprime", como forma de mitigar esse risco, os bancos teriam de privilegiar a concessão de créditos em zonas nobres, com preços menos voláteis. Adicionalmente, os bancos seriam obrigados a exigir relações muito favoráveis (para eles) entre o financiamento e o valor do imóvel a hipotecar. Combinados, estes factores de localização, preço e de capacidade de aportar uma elevada entrada poriam fora do mercado as populações de menores rendimentos, as quais passariam a viver uma situação de exclusão do mercado de compra de habitação, ficando relegadas para o mercado de aluguer.
Mudar "a posteriori" as regras para os contratos concedidos ao abrigo do regime legal vigente irá acarretar perdas importantes para o sector bancário. É populista vir agora culpar os bancos da situação de dificuldades em que se encontram muitos devedores. Os custos desta situação terão de ser repartidos por ambos os lados, não podendo alguns bancos eximir-se às responsabilidades decorrentes de anteriores políticas de crédito agressivas, que em devido tempo tive a oportunidade de criticar. Mas tais devedores também não se podem eximir a sofrer as consequências da sua irresponsabilidade. Só assim ambos aprenderão e pagarão pelos erros cometidos. Mudar agora as regras do jogo favorecendo escandalosamente uma das partes parece-me mal. Até porque sabemos que no contexto actual, quem pagará a factura apresentada aos bancos serão os contribuintes do costume, através das entradas de capital que o Estado lá terá de realizar para fazer face às novas perdas daí decorrentes.
Professor da Universidade Nova de Lisboa
No modelo adoptado na Europa, o devedor contrai um empréstimo, ficando com a obrigação de cumprir com todos os pagamentos contratados com o banco. O imóvel é dado como garantia. Em caso de incumprimento esta é executada. O imóvel é tomado pelo credor, o qual o tentará alienar como forma de recuperar o montante em dívida. Caso dessa venda resulte quantia inferior a este, o credor poderá tentar penhorar outros bens, incluindo os rendimentos futuros do devedor. Aqui, o risco do banco assenta sobretudo na estabilidade dos rendimentos daquele. Situações de desemprego, problemas de carreira, divórcio ou doenças afectam mais o banco do que as flutuações do mercado imobiliário. O preço e condições fixados neste produto têm em conta, precisamente, estas características de risco.
Um produto com as características de risco do agora proposto tem de ser vendido, portanto, de forma diferente daquele que hoje conhecemos. A maior exposição dos bancos ao risco de preço imobiliário que este tipo de contratos acarreta implicaria, inevitavelmente, um aumento das taxas de juro a cobrar. Nesta era pós-"subprime", como forma de mitigar esse risco, os bancos teriam de privilegiar a concessão de créditos em zonas nobres, com preços menos voláteis. Adicionalmente, os bancos seriam obrigados a exigir relações muito favoráveis (para eles) entre o financiamento e o valor do imóvel a hipotecar. Combinados, estes factores de localização, preço e de capacidade de aportar uma elevada entrada poriam fora do mercado as populações de menores rendimentos, as quais passariam a viver uma situação de exclusão do mercado de compra de habitação, ficando relegadas para o mercado de aluguer.
Mudar "a posteriori" as regras para os contratos concedidos ao abrigo do regime legal vigente irá acarretar perdas importantes para o sector bancário. É populista vir agora culpar os bancos da situação de dificuldades em que se encontram muitos devedores. Os custos desta situação terão de ser repartidos por ambos os lados, não podendo alguns bancos eximir-se às responsabilidades decorrentes de anteriores políticas de crédito agressivas, que em devido tempo tive a oportunidade de criticar. Mas tais devedores também não se podem eximir a sofrer as consequências da sua irresponsabilidade. Só assim ambos aprenderão e pagarão pelos erros cometidos. Mudar agora as regras do jogo favorecendo escandalosamente uma das partes parece-me mal. Até porque sabemos que no contexto actual, quem pagará a factura apresentada aos bancos serão os contribuintes do costume, através das entradas de capital que o Estado lá terá de realizar para fazer face às novas perdas daí decorrentes.
Professor da Universidade Nova de Lisboa
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