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Opinião
15 de Janeiro de 2007 às 13:59

O último figurino

Nos últimos trinta anos, a acusação mais firme e ao mesmo tempo mais sustentada à sociedade portuguesa é a sua generalizada apatia. É justa.

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Tirando o orgulho mostrado nas ruas pela Expo, a sentida mobilização por Timor e os ruidosos e folclóricos festejos pelo Euro, nada mais, em boa verdade, mobilizou a sociedade portuguesa. Concedendo, os dois referendos realizados e, mesmo assim, só parcialmente.

De todas as razões para este estado de espírito, avultam três que o fizeram estruturante. Primeiro, a ausência de um conflito grave envolvendo o país nos últimos séculos. Mesmo tendo em conta a participação numa batalha na Iª Guerra e a guerra de África, nunca a sociedade portuguesa sofreu, como outras sociedades sentiram, as fracturas que exigem uma mobilização geral e que a acordem para uma permanente vigília. Há, como é sabido, males que vêm por bem mas no caso português nunca se padeceu desses males que podiam ter tonificado a sociedade. Segundo, a "cultura" salazarista que domesticou completamente a sociedade. Com a agravante de ter aculturado as gerações de então e de ter posto os ovos cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir. No campo vivia-se no campo e não existiam quaisquer meios de mobilização de quem quer que fosse e na cidade a atenção redobrada dos instrumentos do regime impedia qualquer veleidade de vivificar a sociedade. Terceiro, o "conforto" proporcionado pela Igreja que se encontrava eclesialmente "dentro" do regime e que "acalmava" semanalmente os respectivos paroquianos em nome de valores tradicionalmente bem recebidos pelos portugueses. De tudo isto, em simultâneo, resultaram duas notas. Uma, a da austeridade. Transitou de imediato para os costumes e perdura até hoje. De sorte que, um político que mostre o seu lado lúdico, alegre ou divertido com as coisas e os prazeres da vida não é, ainda hoje, tomado a sério em Portugal. Outra, a da anomia. Penetrou tão profundamente que impede a sociedade de olhar, com olhos de ver, os conteúdos das mensagens políticas. Raramente se repara na substância das coisas e tudo fica por olhar a forma que as coisas revestem. De maneira que as mensagens precisam de pouca substância.

Este retrato, típico do século XX português, composto de austeridade (hoje encenada) e de anomia (bem real), mantém-se em grande parte na vida política. Mesmo, naturalmente, com outros protagonistas e mesmo na juventude de hoje, candidata à política. Num recente debate televisivo, cujo mote era o estado da juventude, ficaram patentemente demonstradas aquelas duas notas. E a demonstração foi até realçada pelas excepções. Estas, provindas de instituições mais ou menos ligadas à Igreja, expressaram momentos de solidariedade social. A regra, vinda de "representantes" das juventudes partidárias (essa verdadeira aberração que teima em persistir) foi a de que cada um cuida de si próprio. Ainda que em nome da respectiva "juventude". Entre um candidato ao cinema que gosta de ouvir o som das palavras mas não as entende, um figurante saído da inspiração de Bordalo Pinheiro, um personagem que se põe a milhas da social democracia mas, porventura confuso, elogia o modelo nórdico e duas jovens senhoras que debitam, em tom de compasso, as respectivas cartilhas de cordel, nem uma só ideia digna desse nome se ouviu. Pior seria impossível mas foi possível. Uma outra jovem senhora, representando o conselho da juventude ou algo assim, conseguiu a proeza de não concluir, quase nunca, as (poucas) frases que iniciou. A anomia no seu expoente máximo. Mas as poses eram austeras, nos vários modelos adoptados. Como convém a carreiristas.

A cultura do lazer e a importância que se atribui ao bem estar momentâneo são objectivos curtos. Apenas cuidar de si próprio é o contrário da cidadania. E se o "último figurino" é o que se viu nesse debate, pobre país que tem de aturar estas criaturas e a maior parte das vezes ainda tem que as sustentar.

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