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27 de Agosto de 2004 às 15:18

O Preto, a banana e o racista

No mesmíssimo dia em que os jornais portugueses saudavam a conquista, por Portugal, da medalha de prata nos 100 metros rasos (a “Fórmula Um” do atletismo), os mesmíssimos jornais publicavam excertos de um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) q

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No mesmíssimo dia em que os jornais portugueses saudavam a conquista, por Portugal, da medalha de prata nos 100 metros rasos (a "Fórmula Um" do atletismo), os mesmíssimos jornais publicavam excertos de um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) que denunciava a ocorrência de "actos de motivação racista e de incitamento ao ódio, especialmente contra minorias étnicas" em Portugal.

Na rua, ouvi um pretenso humorista dizer que o segredo da medalha de prata de Francis Obikwelu nos 100 metros rasos foi terem-lhe posto uma banana junto à meta. Ou muito me engano ou a intenção era aludir a alguma semelhança entre o atleta e os macacos. É estranho, porque o atleta em questão é negro e a maior parte dos macacos tem a pele clara; se o deixasse crescer, Francis Obikwelu revelaria um cabelo enrolado, enquanto o dos macacos é liso; como é comum nos da sua raça, Obikwelu tem os lábios grossos, enquanto os dos macacos são finos; e, se o exame fosse mais minucioso, verificaríamos que os caninos superiores de Obikwelu não hão-de ter uma fossa característica dos macacos e dos humanos de raça branca.

Longe de mim defender um humor politicamente correcto, limitado pelo pavor de ofender raças, credos, sexos, orientações sexuais ou nacionalidades (sempre achei imensa graça aos brasileiros que começam a piada dizendo que "estavam dois japoneses à beira da estrada. Um chamava-se Joaquim e o outro, Manuel?").

Mas há duas condições essenciais para que se possa rir de uma piada: a verosimilhança – por mais absurda que possa ser (gosto, por exemplo, do psicadelismo de uma piada sobre uma plantação de órgãos sexuais femininos, todos muito viçosos e, embora absurdos, a florir, verosímeis, pelo vale afora); e, eis a segunda regra de ouro do humor: a piada sexista não tem graça quando contada por um sexista; a xenófoba quando contada por um xenófobo e, claro, a racista quando contada por um racista.

Se evitarmos piadas com as raças, as nacionalidades ou os sexos que temos, o melhor será desistirmos de rir. Mas as piadas às vezes são tão fracas, tão sem graça, que mais parecem ter a intenção de afirmar posições (racistas, sexistas, xenófobas?) e de sondar reacções do que de fazer rir. E o riso de quem ri dessas piadas mais parece demonstrar que se compartilha posições do que o efeito da graça (por falta dela).

E é claro que quando o racismo é afirmado na inocência de uma piada (as piadas são todas inocentes. Quem as conta é que pode não ser), o autor sempre poderá levar as mãos ao peito e perguntar indignado: "Racista, eu????!!". Será então o caso de se contar a daquele que começou por dizer: "Eu não sou racista, mas?" e continuou: "Mas se há povo que detesto é o alemão, porque teve a oportunidade de acabar com os judeus e deixou o trabalho pela metade. Até parece serviço de preto".

PS: O mesmo relatório da ONU que apontava "actos de motivação racista e de incitamento ao ódio, especialmente contra minorias étnicas" em Portugal, elogiava o Estado português pela criação de mecanismos de protecção aos imigrantes. Nessa fotografia o Estado sai melhor do que o povo.

PPS: Foi a correr, a pé, que Portugal (Francis Obikwelu, prata nos 100 metros rasos e Rui Silva, bronze nos 1500m) conquistou as suas mais honrosas posições nestes jogos Olímpicos. Não deixa de ser irónico, considerando que os cidadãos portugueses estão impedidos de correr ou de andar, a pé, pelos passeios públicos, tomados por carros que, por sua vez, os tomam por estacionamentos privados.

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