Opinião
Um pau que nasceu torto
Acompanhei, como jornalista, todas as reuniões, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, que, em 1986, geraram a proposta de Acordo de Unificação Ortográfica dos países de língua oficial portuguesa. Foi então que descobri que pessoas cultas e
Nessa perspectiva, o momento mais revelador foi quando se chegou à proposta – perdoem-me mas não me lembro de quem (já lá se vão 22 anos!) – de, a pretexto de simplificar a ortografia portuguesa, suprimir os acentos das palavras esdrúxulas. Foi imediatamente e sem grandes discussões aprovada a proposta. Torci-me todo na cadeira e só à custa de grande esforço não me levantei para protestar – como é que me tiravam assim, com essa ligeireza, o único acento que sei pôr sem nenhuma dúvida. Afinal, a regra é simples e sem excepções: “todas as esdrúxulas são acentuadas” e, para simplificar, aqueles senhores tão cultos, tão filólogos, trocam essa regra pela mesma regra ao contrário: “nenhuma esdrúxula será acentuada”???!!! Felizmente, essa asneira já não consta do acordo, ou melhor, do segundo protocolo modificativo do acordo de unificação ortográfica ratificado na semana passada pelo governo português (essa devemos ao trabalho silencioso mas eficaz dos nossos amigos cágados – sem eles, não sei se seria possível). Serviu, de qualquer maneira, para me abrir os olhos para a hipótese de estar ali a testemunhar o nascimento de um pau torto. E, como se sabe, não há protocolo modificativo que endireite um pau nascido torto.
Foi naquelas reuniões na Academia Brasileira de Letras que me foi revelado também o quanto pode ser antidemocrática a regra, ali adoptada, de só aprovar o que for decidido por unanimidade. A certa altura, o professor Lindley Cintra começou a ver-se completamente isolado numa assembleia dominada pela inegável capacidade de sedução de António Houaiss. Se votassem cada modificação proposta, o voto do professor Cintra seria, possivelmente, o único voto diferente – ou talvez alguém o acompanhasse, se a discordância não fosse imobilizante – mas, mesmo que o resultado fosse o mesmo, poderia ao menos manter a sua posição discordante, embora minoritária. Com a exigência de unanimidade, ele, que queria a unificação ortográfica, que não a queria inviabilizar, teve de calar, uma a uma, todas as suas discordâncias. Uma violência. Um exemplo? Lá vai: discutiam a junção de todas as palavras hoje separadas por hífen até que alguém se lembrou dos problemas fonéticos que decorreriam da junção de palavras como “bem-me-quer”. A proposta foi de juntar todas as palavras hoje separadas, menos aquelas cuja junção gerasse problemas fonéticos. O professor Cintra, já visivelmente cansado – e já sob a pecha de “conservador” – ainda tentou: “Por que não nos abstemos de legislar sobre essa matéria, deixando a separação ou a junção das palavras ao critério de quem as escreva?” E o “progressista” professor Houaiss: “Mas, professor Cintra, a liberdade poética fica mantida.” “Muito obrigado, magnânimo professor Houaiss”, disse, de mim para mim, com a ironia a arder-me no estômago. O professor Cintra não disse mais nada e não me lembro de lhe ter ouvido a voz ao longo do que restou da reunião.
PS: Eh prohibido estassionar em sima do paceio. Assim dá para entender?