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Opinião
04 de Setembro de 2007 às 13:59

Nas cinzas da alma

As culturas dos povos europeus são tantas e tão diversas são as suas raízes que somos quase sempre levados a procurar o mais vasto denominador comum. Para nos compreendermos a nós próprios. Mas nos momentos das grandes catástrofes, esse é um exercício des

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Senti-o de forma particularmente impressiva há quase vinte anos. Estava, nesse fim de Agosto, no norte da Europa e o Chiado tinha ardido. A mentalidade protestante ou aparentada é severa e pouco dada à exteriorização de lamúrias. Não gosta de enfeites e prescinde de atavios que acha fúteis. Talvez por isso, sabe, exactamente, eleger os momentos em que é obrigatório ser solidário. Senti, nessa altura, toda a solidariedade do mundo. Porque tinha ardido o Chiado. Porque ele se tinha perdido. Pelo menos naquele momento. E nas terras da Flandres, onde a luminosidade (das almas) é difícil de perscrutar, houve brilho nos olhos dos locais quando souberam estar por perto um português. Nessa altura até se esqueceram do que nunca perdoam – a falta de cultura da responsabilidade dos povos do Sul. Arderam nas emoções e exprimiram--no sinceramente. Sabiam de cor o número (18) de edifícios do século XVIII que tinham ardido. E isso era para eles insuportável. Lembrei-me outra vez disto a propósito da mais recente tragédia grega. Quando, daqui a anos, 2007 for um número, lá dirão que houve uns incêndios na Grécia. Só dirão isso. Mas isso não chega. Porque 2007 conheceu naquele país o que nunca ocorrera nos últimos 150 anos.

Património histórico único ameaçado dias a fio, florestas devastadas, aldeias inteiras esventradas, colheitas arrasadas, milhares de pessoas em fuga, centenas encurraladas, aldeias inteiras evacuadas. Mortes, muitas, demasiadas. Um braseiro indizível. O mundo “a acabar” e o mundo daquela pobre gente a acabar. Duas notas marcam e marcarão os dias. A primeira respeita aos incendiários. O Estado grego travará, diz o próprio, uma “luta renhida” contra eles e “fará tudo o que for possível para encontrar os responsáveis e puni-los”. Na sequência das intenções, Atenas pondera tratar os incendiários como terroristas, procurando saber se tais crimes podem “ser incluídos na Lei Antiterrorismo”. Ora, sabendo os gregos e sabendo todos nós, que os incêndios todos os anos lavram naquelas bandas (embora sem as proporções destes), percebe-se mal que a dita ponderação e a referenciada analogia só se tenham levantado agora, depois das cinzas e dos braseiros, avistados e gritados dos satélites que fazem festas à Terra. A segunda nota respeita ao aproveitamento político e partidário que a tragédia está a potenciar. A duas semanas de eleições, era inevitável o peso da catástrofe na política. Mas seria razoável esperar que o mínimo de decoro impedisse um miserável aproveitamento partidário da situação. Em momentos como o que a Grécia hoje vive, é de esperar que os partidos se entendam e que entendam que em questões de regime a “partidarite” aguda fica à porta.

Lamentavelmente não foi isto que sucedeu. Um caso e o outro, aliás, são típicos dos países do Sul da Europa. Por um lado, tratam-se as coisas depois de sucederem. Nunca se antecipa a sua possibilidade. Nunca se legisla antevendo-a. As trancas na porta são trancas do Sul porque a casa roubada situa-se a Sul. Por outro lado, aproveitam-se as coisas para os fins mais inconfessáveis. A intriga campeia como o fogo, a polémica ateia-se para objectivos não confessados mas intimamente desejados. A terra queimada é uma política universal mas nem por isso decente. No caso é grega e, como sempre, indecente.

É chocante ver a impotência de quem tem direito a sobreviver. Em qualquer lado. Mas tenho para mim ser muito mais chocante vê-lo quando se trata de pobre gente. É uma dupla injustiça. Nem direito têm a continuarem pobres. Tão obsceno como o combate com mangueiras de regar a relva é tristemente patético.

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