Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
27 de Junho de 2003 às 09:00

Mário Negreiros: «A tragédia carioca»

Voltei há apenas um ano para Portugal depois de três décadas no Rio de Janeiro. E sinto que o Rio já não é o mesmo que deixei.

  • ...
Voltei há apenas um ano para Portugal depois de três décadas no Rio de Janeiro. E sinto que o Rio já não é o mesmo que deixei.

Não sei se por saturação, se por contenção de gastos com correspondentes, se por fascinação com o “fenómeno Lula” ou se por qualquer outro motivo, a imprensa portuguesa tem dado pouca atenção a um fenómeno terrível de cuja existência só sei pela leitura de jornais brasileiros e pela conversa com amigos cariocas.

Trata-se da “colombização” da violência no Rio de Janeiro. O grau de violência no Rio já ultrapassou, há muito tempo, qualquer limite aceitável.

A “notícia”, portanto, não está aí, mas numa mudança importante na natureza dessa mesma violência.

Há um nome fundamental para que se entenda esse fenómeno: Fernandinho Beira-Mar (é notável que os maiores e mais ferozes criminosos brasileiros tenham, em regra, alcunhas carinhosas).

Traficante de uma das favelas cariocas, Fernandinho passou uma longa temporada foragido no Paraguai e na Colômbia.

Lá, teve contacto com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) – guerrilheiros que, enquanto não triunfam, fazem fortunas com a cocaína que recebem em pagamento pela protecção que fornecem aos narco-traficantes (triunfar para quê?).

Preso e repatriado, Fernandinho Beira-Mar continua à frente do seu próprio exército, e é da prisão que dá as ordens, que tanto podem ser de execução de rivais ou autoridades que o prejudiquem, quanto de fechamento do comércio na cidade.

Há uma padaria no Leblon (bairro chique da zona sul – o único que não tem favelas) chamada Rio-Lisboa.

Nunca fechava – 24 horas por dia a servir pão. Fechou as suas portas pela primeira vez há cerca de um mês. Ordem do tráfico – muito possivelmente, de Fernandinho Beira-Mar.

É um caso emblemático. Mas há outros. Muitos. Escolas, super-mercados, bancos... basta um telefonema.

A princípio, houve quem desobedecesse. No dia seguinte, tinha o estabelecimento metralhado. Fernandinho é homem de palavra.

Também a ele se atribuem atentados contra hotéis, shopping-centers e até contra o o “bondinho” do Pão de Açucar – postal da “Cidade Maravilhosa”. Pretende com isso pressionar as autoridades para lhe aliviarem o regime prisional, de maneira a garantir privilégios (tanto de conforto quanto de comunicação com o mundo exterior, de maneira a manter o poder) ou a aliviar as condições de segurança para que, surgida a oportunidade, fuja (não seria a primeira vez).

O facto é que, independentemente da motivação, a violência - que era esparsa, pontual (mesmo que fossem tantos os pontos), que tinha no terror apenas um efeito colateral - é agora articulada, organizada, deliberadamente terrorista, tal como na Colômbia das FARC.

Além das ameaças que se cumprem, há o terror permanente, que pode ser deflagrado por qualquer acontecimento fortuito – um carro avariado no túnel Rebouças, por exemplo, já levou os condutores a darem meia volta e a fugir, na contra-mão, em pleno túnel, por pensarem que o engarrafamento tinha sido causado por um dos vários tiroteios que, praticamente todos os dias, interditam algumas das estradas principais do Rio de Janeiro, como a Linha Vermelha, que liga o aeroporto à cidade.

Não sei por que lhes conto isto. Estou a “falar mal” da cidade onde vivi mais de metade da minha vida – com o agravante de falar à distância, “pelas costas”. Feio.

Peço que compreendam: o Rio tem mais de 5 milhões de habitantes. O “exército do tráfico” não terá mais do que 5 mil integrantes. São 5 milhões de reféns e 5 mil algozes. É dos algozes que não gosto.

O que peço é solidariedade, embora não tenha a menor ideia de como a transformar em actos.

PS: Diante do que está dito acima, parece incrivelmente comezinha a minha insistência (mantida desde o primeiro artigo que publiquei neste jornal) em me queixar dos carros estacionados nos passeios portugueses. Calo-me hoje, com a esperança de, na semana que vem, ter assunto mais ameno, que me permita a indignação diante do que não chegue a ser trágico.

Por Mário Negreiros

mnegreiros@clix.pt

Artigo de opinião publicado no Jornal de Negócios

Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio