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Negócios negocios@negocios.pt 08 de Agosto de 2003 às 10:14

La bourse portugaise

Nos anos 90, as bolsas portuguesas eram altamente rentáveis. Agora, a delegação do Porto vai encerrar. “Just follow the money!” e entender-se-á muito do que se passou de então para cá.

Ricardo Cruz

Clarifiquemos. Escrevo do Porto. E, embora em nada me envaideça o provinciano bairrismo que tantas vezes faz o verbo parolo e inconsequente de alguns conterrâneos, confesso que, desta feita, não resisti.

Por isso, propus-me escrever sobre o Porto. Sobre a Bolsa do Porto. Melhor, sobre a bolsa... no Porto. Sim, a ex-Bolsa de Valores do Porto, ex-Associação da Bolsa de Valores do Porto, ex-Bolsa de Derivados do Porto, ex-Bolsa de Valores de Lisboa e Porto. Hoje sob o cognome de Euronext Lisboa. A qual até tem mantido uma delegação no Porto. Pasme-se!

Essa “delegação” – o termo é já em si acintoso – vai encerrar. O presidente da holding Euronext NV – um distinto financeiro parisiense – quer que o seu balcão em Portugal seja mais lucrativo. Vai daí, despediu uns quantos funcionários na capital. E propõe-se fazer o mesmo, no Porto, a todos os trabalhadores. Desmantelando equipamentos, capital humano e todo um historial de competência e inovação como poucas vezes se pôde assistir em Portugal. Concentrar-se-ão, para já, todos os serviços e funções noutra cidade do país. Sim, mais a sul. Talvez a derradeira escala até um fino Quartier de Paris.

Soube-se isto há poucas semanas. Mas adivinhava-se. Desde sempre. O calvário bolsista do Porto inicia-se com o seu parto, em 1980. Sá Carneiro, Cavaco Silva e Miguel Cadilhe assumem politicamente a reactivação da Bolsa do Porto, numa fase em que o mercado de capitais inexistia em Portugal para além de encardidos fascículos do Diário da República. Só quem não leu as actas das reuniões à época havidas é que desconhecerá o violento ódio que a decisão desde sempre suscitou na Corte, ainda que o que estivesse em causa fosse... um cadáver: a bolsa estava morta desde 1974.

Esse ódio ganhou expressão. Com a especulação de 1986-87, a Bolsa do Porto chegava aos 40 por cento do mercado. O mesmo ódio povoou os bastidores dos trabalhos preparatórios da reforma do mercado, entre 1988 e 1990. Redobrou, com a constituição da CMVM. E foi elevado ao seu máximo expoente quando, em 1994, a Bolsa do Porto apresentou um ambicioso projecto de criação de um mercado de derivados – que, contra tudo e todos, vingaria pouco tempo depois.

No início dos anos 90, aquando da introdução da “Lei Sapateiro” e da reforma tecnológica do mercado, as bolsas eram instituições altamente eficientes. Tinham sido desenvolvidos sistemas de negociação modernos, a par de dispositivos de liquidação, compensação e custódia electrónica ombreando com os mercados mais avançados.

Mais, a bolsa portuguesa de então soube aprender, passando a desenvolver produtos tecnológicos próprios. Em meados dos anos 90, Portugal estaria em condições de desenvolver e exportar tecnologia no domínio dos sistemas de transacção e custódia de valores mobiliários. Havia “know-how” suficiente para o efeito.

Nos anos 90, as bolsas portuguesas eram altamente rentáveis. Só quem nada sabe pode dizer o contrário. Máquinas de gerar dinheiro. Milhões de contos acumulados em aplicações financeiras, avidamente disputados pela banca. “Just follow the money!” – e entender-se-á muito do que se passou de então para cá.

Mas o problema era outro. Muito mais grave. Chamava-se... Porto. Sede da Interbolsa, sede do mercado de derivados, uma fonte de inovação tecnológica. O problema jamais foi a agora propalada ausência de viabilidade económica ou financeira. A causa sempre fora o Porto. Sim, o Porto.

E, a escolher entre Porto e Paris, a Corte jamais hesitaria. Com mérito, desde os anos 70 que a Bolsa de Paris afirmou a sua capacidade tecnológica. Implantou sistemas no Canadá, no Brasil e em mercados europeus. Quando, em 1997-98, se inventou o problema da actualização do sistema de negociação das bolsas portuguesas, a Interbolsa estava apta a oferecer uma solução moderna de continuidade.

Mas... nunca! A Interbolsa estava no Porto. O ódio era já insuportável. Havia que procurar outra solução. Estivesse ela em Madrid, Paris, Kuala Lumpur ou na Guatemala. Ainda que a energia flua à velocidade da luz, se originada no Porto nunca seria boa. Cozinhando a solução – se necessário mediante generosas compensações de silêncios –, ou engolindo-a com mais ou menos náusea, todos deram o seu ámen. Bolsa. Banqueiros. Governo. Ministro das Finanças. CMVM.

Paris, sistema LIST. Prometia-se liquidez, visibilidade internacional, eficiência, integração europeia, e mais uma série de sonantes patacoadas. Esse foi o verdadeiro funeral da bolsa... no Porto. E em Portugal. Porque muito não tardará, por este caminho.

O problema, a sua verdadeira causa, é esse doentio, provinciano, balofo e cancerígeno ódio pela descentralização. Esse mesmo ódio que faz com que muitos não descansem enquanto a sede recém criada Agência Portuguesa para o Investimento não transite para a capital. Lá chegaremos, porque a contagem é sempre decrescente. Porquê? Como há dias dizia o Professor Marcelo – e dizia muito bem –, o poder conquista-se, porque não há quem dele abdique voluntariamente. E gordas indemnizações sempre acalmam.


Ricardo Cruz

Economista, docente universitário

Texto publicado no Jornal de Negócios

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