Opinião
Bye Bye América
É paradoxal que os Estados Unidos desloquem centenas de milhar de tropas para uma invasão do Iraque, quando são aos milhões as famílias norte-americanas que vivem abaixo do limiar da pobreza.
Os efeitos devastadores do furacão Katrina nas faixas costeiras do Sul dos EUA mostraram duas coisas que são quase uma mesma: que os Estados Unidos estão tão mal preparados para enfrentar catástrofes apocalípticas como as demais nações do mundo – as imagens resultantes da passagem do Katrina são muito semelhantes às imagens provocadas pelo tsunami que destruiu parte do Sudeste Asiático no final do ano passado – e quando toca ao sofrimento humano, são sempre os mais pobres e excluídos que pagam mais caro. Os desalojados nas ruas de Nova Orleães eram, maioritariamente, negros de baixa condição económica que, impossibilitados de fugirem para qualquer outro lado, se quedaram pela cidade à espera de melhores dias. A interpretação destes factos é relevante para o mundo, mas será ainda mais para os próprios Estados Unidos da América. Ao mundo, isto ajuda a quebrar a ideia da invencibilidade do mito: se por um lado, a capacidade logística e militar dos EUA – que de resto já se encontra pelas ruas da amargura no Iraque – se mostra pouco eficiente quando tem de enfrentar os elementos da Terra, por outro, evidencia que o modelo económico norte-americano – aquilo que aqui nos parece o sucesso fácil alicerçado em algo como «querer é poder» – assenta numa distribuição absolutamente assimétrica da riqueza, provocador de enormes bolsas de pobreza, associadas a focos muito complicados de exclusão e violência sociais. E para os próprios Estados Unidos, tudo isto ajuda à desconstrução da ideia imperial que os norte-americanos têm deles próprios. Há muitas coisas sobre as quais os cidadãos dos EUA se podem orgulhar na sua história, nas suas tradições e na sua «american way of life». Mas há uma outra quantidade delas sobre as quais não devem sentir nenhum orgulho. E o facto de serem uma nação socialmente fragmentada e desestruturada deve ser uma dessas.
Enquanto têm investido enormes quantidades de dinheiro na sua projecção mundial, em contínuas intervenções em todas as partes do mundo de onde lhes parecem surgir ameaças, os Estados Unidos têm descurado o desenvolvimento social e económico da sua própria «homeland». E para que lhes serve uma política internacional tão intervencionista e agressiva se a casa está tão desarrumada? Os impérios não se destroem, habitualmente, pela pressão externa, mas pela desagregação económica e social que corrói o seu núcleo e o que lhe está mais próximo. É absolutamente paradoxal que os Estados Unidos desloquem centenas de milhar de tropas para uma invasão do Iraque, cujo sentido e o fim são desconhecidos e provavelmente impossíveis, quando são aos milhões as famílias norte-americanas que vivem abaixo do limiar da pobreza, sem assistência médica, sem qualquer tipo de apoio social e sem acesso a formação escolar de qualidade. O Katrina, para quem gosta de interpretações mais cabalísticas destas coisas, será um sinal de Deus aos americanos para que começam a olhar para o que se passa dentro das suas fronteiras, esquecendo por um bocado os seus ímpetos militaristas no exterior. Mas como vivemos dentro dos parâmetros do racional cartesiano, o Katrina foi, quanto mais não seja, uma terrível catástrofe natural que nos fez olhar de outra forma para os Estados Unidos da América e descobrir que por debaixo de uma fina máscara de modernidade e até de algum «glamour», está apenas um país de pobres e ao nível do que pior se encontra no Terceiro Mundo. Bye bye, América. O mundo merece outros donos.
PS – E por falar em catástrofes, faz este ano 250 anos que o grande terramoto destruiu Lisboa. Convinha, em vez de fazer uma festinha para comemorar o «evento», falar seriamente sobre o tema. De uma maneira profilática e séria. A saber: quais são as zonas sísmicas? os prédios em que vivemos aguentam idêntico choque? quais os riscos de um subsequente maremoto? o que fazer em caso de novo terramoto? a protecção civil tem planos? quais são e são bons e eficientes? Porque é que suspeito que, se a Natureza se repetir, Lisboa será agora uma catástrofe muito maior do que a de 1755?