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10 de Julho de 2003 às 11:59

As Ilusões Nacionais

Há consensos e verdades inquestionáveis que não chegam a resistir ao primeiro teste de terreno. A velocidade e as mutações do mundo moderno tão depressa erigem novos modelos (ou paradigmas) como os abatem impiedosamente por obsoletismo.

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Há consensos e verdades inquestionáveis que não chegam a resistir ao primeiro teste de terreno. A velocidade e as mutações do mundo moderno tão depressa erigem novos modelos (ou paradigmas) como os abatem impiedosamente por obsoletismo.

Nós portugueses, à revelia do nosso próprio adágio, gostamos de ir em modas. Aderimos facilmente a lugares-comuns transformados em teorias, tendemos a aceitar acriticamente a informação que nos dão, por mais assimétrica e volátil que seja. E assim nos deixamos frequentemente embalar por aparências e ilusões. Percorramos algumas das mais notórias.

A ilusão da qualidade. Fica-nos bem, é certo, revelar algum patriotismo nas escolhas de consumo. O orgulho lusitano exprime-se geralmente nos géneros frescos - onde a obrigatoriedade da indicação de proveniência fez mais pelos produtos nacionais do que qualquer campanha promocional de grande porte -, no azeite, nos enchidos, nos queijos e nos vinhos, que o comum dos portugueses considera serem os melhores do mundo. Depois temos o clima, as praias, a “qualidade2 da nossa costa e do nosso interior, além de “incomparáveis” infra-estruturas turísticas. E temos o discurso ufano e desenvolvimentista de quem esquece que a concorrência não dorme nem se deixa embalar pela doçura das nossas praias de água fria ou pela originalidade do nosso (des)ordenamento territorial.

Esquecemo-nos que, na indústria do turismo como em muitas outras, quantidade e qualidade são dificilmente compatíveis. Há que escolher uma via, um rumo estratégico. Aumentar as receitas a partir de uma densificação da oferta - leia-se, mais betão - é meio caminho andado para a degradação da qualidade geral.

Portugal ainda tem condições para oferecer sustentadamente bons produtos turísticos, investindo na re-qualificação das infra-estruturas e dos recursos humanos, mas poderá deitar tudo a perder se transigir com o facilitismo. Agora que o Governo promete apostar forte no turismo do Alto Douro, é bom que dê prioridade à resolução das principais deficiências - acessibilidades, lixos, ferrovias, oferta cultural, formação profissional - e resista à pressão imobiliária.

Ponha os olhos na Califórnia e no extraordinário aproveitamento turístico que os americanos fazem em torno da vinha, do vinho e do sol. E não se esqueça de reservar a estada numa das estalagens do roteiro vitivinícola de Napa Valley com um ano de antecedência, porque a oferta é (inteligentemente) limitada. Eles não brincam com a qualidade.

A ilusão das sinergias. Velho como o mundo, é hoje um dos princípios mais invocados na gestão organizacional, tanto quanto na administração governativa. O reforço de competências e a obtenção de novos patamares de eficiência produtiva são os resultados sempre esperados do efeito-sinergia. Difícil é identificar os elementos a agregar e a técnica de fusão.

Qual o grau de compatibilidade “genética” das partes? Como medir o saldo “energético” (ganhos versus dispêndios de energia) da integração? Como garantir em simultâneo os propósitos de eficiência e qualidade? Nestas incertezas já esbarraram milhares de iniciativas, umas bem sucedidas após terem vencido árduos períodos de transição, outras derrotadas por erros de análise ou falhas na implementação.

Acredito que o Governo tenha ponderado todos os factores quando se decidiu pelo novo modelo de diplomacia económica. Em tempo de vacas magras, a razão financeira é muitas vezes indutora de transformações positivas, só que nesta matéria há muito mais em jogo do que uma simples racionalização de custos.

Não estou entre os que crêem que o enfoque determinante na moderna acção diplomática deva ser forçosamente o económico e tenho mesmo alguma dificuldade em discernir o sentido exacto da expressão “diplomacia económica”. Mas não restam dúvidas de que a actividade promocional no exterior é um elemento decisivo para a sustentação da economia portuguesa, pelo que importa saber gerir do modo eficaz os recursos disponíveis e a experiência acumulada.

O ICEP tinha uma estrutura montada há mais de vinte anos, em muitos casos paralela à própria malha diplomática. Sei da opinião pouco elogiosa que muitos empresários portugueses têm acerca da sua actividade, tal como acerca da nossa diplomacia. Há uma grande dose de injustiça nesses reparos, como é habitual entre as gentes lusitanas.

Conheci excelentes exemplos de profissionalismo nalgumas das mais exigentes delegações do ICEP e desempenhos comerciais notáveis por parte de alguns dos nossos embaixadores. Se há economias possíveis a fazer - e há-as ao nível dos custos de estrutura, tantas vezes duplicados -, têm de ser acompanhadas de enfoque estratégico nas competências nucleares - conhecimento do terreno, ligações à base económica nacional, intelligence apurado, iniciativa e criatividade.

Ora, os sinais de que dispomos levam-me a pensar que os dois consortes - a estrutura diplomática e o ICEP - não estavam preparados para o enlace. Pior: vão ser forçados a partilhar tarefas para que alguns nunca foram educados nem estão minimamente sensibilizados. Deprimida e sem dinheiro, a nossa máquina externa lamenta-se.

Pouco lhe importam os benefícios teóricos do efeito-sinergia, só sabe que o dinheiro escasseia como nunca e que a avaliação de desempenho passará a contar com um crivo comercial que a maioria desconhece. O exemplo americano, onde provavelmente o Governo português se inspirou, alicerçado numa “diplomacia económica” tríplice - State Department, Commerce Department e o poderoso US Trade Representative, na dependência directa do presidente - tem uma lógica de funcionamento que se coaduna com a matriz económica e cultural USA. Não lhe faltam meios financeiros, experiência e suporte orgânico especializado. A orientação política é clara e unívoca: fomentar as exportações. Veremos se a novel réplica lusitana, pobre de recursos e de ideias, mas fértil nas intenções “reformistas”, surte efeito.

Por Luis Nazaré
Economista e professor do ISEG
Publicado no Jornal de Negócios

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