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27 de Outubro de 2006 às 13:59

A responsabilidade de proteger não se limita ao Primeiro Mundo

A queda do Muro de Berlim não foi apenas a abertura do caminho para a unificação alemã. Em termos globais foi a abertura de uma nova era onde a economia e as finanças se sobrepuseram à política e aos Estados.

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Insidiosamente essa sobreposição veio a tornar-se determinação da política dos Estados que, gostemos ou não, agem em função de interesses económicos mesmo quando se empenham da defesa dos Direitos Humanos e agem em nome dela.

Teorizar sobre as relações promíscuas entre Estados e interesses de grupos económicos seria bizantino. É um facto, como outros que o Homem se confronta e se vê impotente para dominar, como o aquecimento global, o desrespeito pelo Tratado de Kyoto, ou o desaparecimento das florestas tropicais.

A ponte aérea de Berlim, no início da década de 60, visou em primeira análise impedir que as tropas soviéticas dominassem a capital dividida entre as potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, e tornou-se uma imensa acção humanitária que salvou ou mitigou a situação dramática que os berlinenses confrontaram.

A aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Tratado do Genocídio, aprovados pela ONU – conjunto de Estados – em meados da década de 60, foi o primeiro passo para uma responsabilidade colectiva: a Responsabilidade de Proteger. Na realidade o conceito, pois não se trata de mais, deriva dessa assinatura que pretende garantir o respeito pelo Individuo em risco ou cujos Direitos Humanos, incluindo o direito à vida estejam ameaçados. Em 2005 formalizou-se essa responsabilidade como um acto independente das soberanias dos países pois já havia sido necessário proteger populações contra os seus próprios Governos e Estados. Mas isto custa dinheiro.

A queda do Muro de Berlim marcou também o início de um Mundo Unipolar deixando os Estados Unidos como única potência capaz da projecção de forças em qualquer parte do Mundo. No quadro da "Responsabilidade de Proteger" pouco se poderá fazer se Washington se colocar à margem. A projecção de forças fica dependente das verbas disponibilizadas à ONU para empenhar forças de países que voluntariam o envio de tropas para forças de manutenção de paz. E nem sempre o dinheiro prometido aparece.

A Bósnia e o Kosovo foram dois casos de sucesso, embora discutíveis pelos não intervencionistas. Alegando a protecção das suas próprias fronteiras e a estabilidade nos Balcãs as forças da NATO levaram a cabo campanhas aéreas interditando o território aos genocidários e assim protegendo milhões de pessoas. Todavia quando chegou o momento de colocar tropas no terreno, em risco de combate, os Governos vacilaram dando sinais contraditórios aos que hoje se sentam no Tribunal Penal Internacional, ou se encontram ainda em fuga protegidos pelas próprias autoridades emergentes da ex-Jugoslávia.

Na Somália a intervenção norte-americana seguida de outras forças não foi exactamente um fracasso. Morreram soldados americanos mas a estrutura dos Senhores da Guerra que esventravam o país foi atingida severamente. A acção não foi até às últimas consequências dado as baixas já sofridas e as que ainda iriam ocorrer.

No Ruanda a situação foi catastrófica. A ONU enviou para o país uma força incomensuravelmente inferior ao planeado pelo seu comandante, o general Roméo Dallaire, canadiano. A força tinha homens a menos, contingentes mal treinados, toda ela estava mal equipada e a burocracia da ONU conjugada com a falta de financiamentos chegou a deixar esta força sem alimentos, munições e combustível. Dallaire procurou cumprir uma missão impossível até ao dia da retirada. Os seus reforços chegaram quando Paul Kagamé já havia tomado o poder. As suas mensagens para Nova Iorque eram claras: estava a ocorrer um genocídio no país, levado a cabo pelas tropas e milícias governamentais. O saldo ultrapassou os 800 mil assassínios e milhões de refugiados e deslocados internos.

A contagem de mortos só parou quando Kagamé derrubou definitivamente o Governo (inexistente de facto) e as milícias fugiram, algumas para o ex-Zaire. Embora fosse evidente que Dallaire devia de agir ao abrigo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas o seu mandato foi coarctado. A força agiria sob o Capítulo VI que ao contrário do VII impede uma força de agir de forma agressiva para evitar o desenvolvimento de catástrofes humanitárias.

No Líbano, os esforços da Comunidade Internacional foram contraditórios, em especial do Conselho de Segurança, e Israel levou a cabo uma nova agressão contra aquele país cuja economia começava a recuperar da intervenção israelita em 1982.

No Sudão, a guerra civil prolonga-se há décadas com acordos pelo meio que não resolveram os problemas do país e colocam a população do Darfour em sério risco. Um novo genocídio está a acontecer em África sem que as Resoluções da ONU sejam implementadas. É claramente uma discriminação face à resolução da acção na Bósnia e Kosovo. O contingente de sete mil homens da União Africana não está preparado para uma acção de manutenção de paz, nem equipado para isso. O Conselho se Segurança aprovou uma força de 20 mil capacetes azuis sob o Capítulo VII, mas não deu qualquer passo para ter essa força pronta a intervir porque... o Governo do Sudão, patrono das milícias Janjaweed responsáveis pelos massacres, acha essa intervenção um atentado à sua soberania.

As sanções contra dignitários do regime e os seus interesses económicos não são consideradas, o embargo ao petróleo sudanês não é encarado, e os meios para Cartum continuar a guerra estão lá.

Mesmo que os Estados presentes no Conselho de Segurança decidam implementar a Resolução 1706 de 31 de Agosto de 2006 e entrar no Darfour sem o consentimento do Governo, ao abrigo do Capitulo VII e das conclusões da "Cimeira do Milénio +5" – que prevê a defesa dos cidadãos contra os seus próprios Estados –, a força só poderá intervir dentro de meses, largos meses pois nada foi feiro para a constituir.

A "Responsabilidade de Proteger" é uma obrigação moral e jurídica da Comunidade Internacional; mais uma daquelas obrigações/direitos que tudo indica se irá perder por entre os corredores políticos e cuja aprovação foi meramente mediática. Na verdade é mais fácil, mais rentável e menos dispendioso proteger poços petrolíferos ou plantações de bananas.

O UNHCR (Alto Comissariado da ONU para os refugiados) não tem qualquer competência para agir junto dos chamados "deslocados internos", à mercê de Governos, apoiados (quando são) por algumas ONG’s, mas sem efectiva protecção internacional. Guterres tem vindo a defender essa responsabilidade de protecção tornando abrangente a definição política de refugiado. Mas tem um longo caminho a percorrer.

A "Responsabilidade de Proteger" não é exclusivamente militar, é social, é económica, é financeira e é jurídica. Nenhum governante deverá estar a salvo do Tribunal Penal Internacional. Era ali que Saddam Hussein deveria estar a ser julgado. Os EUA deveriam reconhecer o Tribunal, mas têm boas razões para evitar esse passo.

O Século XXI começa com boas intenções, mas como o seu antecessor ficar-se-á pelas intenções. Só os que estão desesperados acreditam nessa entidade difusa, contraditória e acéfala que definem com Comunidade Internacional. A "Responsabilidade de Proteger", assumida há um ano está refém do Governo do Sudão e das suas milícias, mas ainda há quem queira acreditar nela.

A substituição de um diplomata ganiano por um sul-coreano na ONU, prestes a ocorrer, não vai mudar em nada a inércia internacional. Provavelmente apenas focará a ONU na Coreia do Norte e nas suas armas nucleares. No Darfour, no Chade, Costa do Marfim, etc., não existem armas nucleares e espera-se apenas a "Responsabilidade de Proteger".

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