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Opinião
04 de Abril de 2007 às 13:59

A propósito da redução do défice

As contas da administração pública apresentadas recentemente pelo INE sugerem alguns comentários a propósito da redução do deficit das contas do Estado. Em termos de PIB, a redução de 2,1% verificada entre 2005 e 2006 deve-se, fundamentalmente, a um esfor

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Em termos de PIB, a redução de 2,1% verificada entre 2005 e 2006 deve-se, fundamentalmente, a um esforço repartido igualmente entre um aumento de 1,1% da receita corrente e uma redução, também de 1,1%, de parte da despesa corrente (expurgada dos juros e das prestações sociais) a que se sobrepuseram dois efeitos quase idênticos mas de sinal contrário – a subida de 0,5% dos juros e prestações sociais (em tempo de desemprego crescente e de aumento das taxas de juro) e a redução de 0,4% das despesas líquidas de capital (investimento menos receitas de capital).

Confirma-se, portanto, uma redução real do peso da despesa, nomeadamente da despesa primária, que se reduz em 0,7% do PIB. Estas reduções tiveram consequências significativas quer no crescimento da economia quer no emprego pois foram apenas parcialmente compensadas pela procura externa. O investimento privado continuou a ser insuficiente para compensar a redução verificada no investimento público (cerca de 0,5% do PIB).

Confirma-se, assim, que "não há almoços grátis", isto é, o tratamento do "mal" tem um preço a pagar em crescimento e emprego antes de, repostos os equilíbrios fundamentais, o crescimento e o emprego serem então impulsionados. Continua, no entanto, a ser prioritário para a economia portuguesa  conseguir, a curto prazo, a correcção dos deficits gémeos – orçamental e externo – acompanhado da melhoria da sua competitividade.

Tem sido defendido por alguns sectores que o governo deveria reduzir os impostos para animar a economia. Tal prática, numa fase tão prematura do processo, seria um grave retrocesso na trajectória de criação de condições sustentáveis para a solução estrutural do problema e nem é certo que pudesse contribuir para uma animação significativa da actividade económica. Mesmo nos EUA a tese de que a redução dos impostos sobre as empresas tem um impacto positivo sobre a actividade económica e, por consequência, aumenta a receita fiscal apenas produziu um monumental buraco orçamental.

De facto, as empresas não investem mais por terem impostos mais baixos, mas sim para explorar oportunidades ou para defender e aprofundar as suas vantagens competitivas. Não há redução de impostos que crie oportunidades de investimento (e, consequentemente, crescimento e emprego), melhorias de produtividade ou inovação. É o mercado que gera o investimento e provoca a inovação e não a perspectiva de pagar menos impostos. E quanto à atracção de investimento estrangeiro para o sector empresarial, as dificuldades estão longe de se situar na área fiscal (além de, para estes casos, existir o regime contratual).

Mas aprofundemos um pouco mais esta realidade. No final do último ciclo de crescimento da economia portuguesa (portanto, num momento em que as empresas se situavam ainda numa posição lucrativa do seu ciclo de actividade), mais de 86% das empresas portuguesas apresentou prejuízos fiscais ou lucros inferiores a 5.000 euros. 

Nesse ano, menos de 0,5% das empresas apresentaram lucros superiores a 250.000 euros, representando este pequeno grupo cerca de 48% do lucro tributável e 70% do IRC liquidado. Este conjunto inclui algumas que gozam de situações contratuais de investimento com fiscalidade reduzida e outras que, como os bancos, se encontram em situações que possibilitam uma incidência fiscal inferior à taxa nominal (operações em off shores, etc.).

Interrogamo-nos, assim, sobre qual o impacto económico de uma redução de impostos num país em que a esmagadora maioria das empresas não paga impostos e, das que pagam, parte importante é já sujeita a taxas reduzidas? Qual pode ser o sentido e o alcance político desta medida?

Em sistemas económicos desenvolvidos o impacto das alterações da fiscalidade das empresas faz-se sentir através da Bolsa que, no nosso país, tem uma importância marginal no financiamento do sistema empresarial. Em contrapartida, existe uma promiscuidade significativa entre o património do empresário e os activos da empresa e é nesta interface que se farão sentir eventuais reduções da fiscalidade.

Quanto à redução do IVA ou do IRS, não devemos esquecer que a subida destes impostos foi, juntamente com a contenção salarial e o aumento do desemprego, responsável pelo abrandamento do consumo e consequente  comportamento das importações (influenciadas, em sentido contrário, pelo aumento da componente externa das exportações).

Numa óptica política imediatista, a redução destes impostos é extremamente desejável já que permitirá um aumento de consumo, sempre apreciado e eleitoralmente compensador, e para lá de consequências ao nível da receita fiscal (redução directa menos recuperação por via do aumento do consumo) influenciará, através da animação da procura, não só a actividade interna mas também e, principalmente, as importações.

Se tivermos em consideração a insuficiente competitividade das empresas portuguesas para responder à procura interna, a fragilidade resultante da excessiva pressão sobre o sector imobiliário e a necessidade de evitar novas deteriorações da balança comercial, poderemos concluir que uma actuação precipitada nesta frente fiscal poderá comprometer seriamente os pequenos ganhos já obtidos na correcção dos deficits gémeos.

Recordando as prioridades financeiras anunciadas pelos governos que se sucederam entre 2002 e 2005 esperar-se-ia que a conversão do governo socialista ao "rigor orçamental" tivesse criado, finalmente, um consenso alargado em torno do difícil e demorado exercício da eliminação das causas estruturais do deficit do orçamento do Estado. 

É compreensível a coerência dos que, desde sempre e em nome do "realismo do dia a dia", têm erigido os objectivos de "crescimento" e "emprego" como subordinantes da política orçamental e a redução do deficit como um simples objectivo subordinado.

Mais difícil de compreender é o volte-face dos que ainda ontem apenas juravam pelo rigor orçamental e hoje parecem ignorar que a consolidação não pode ser apenas superficial mas terá de ser sustentável e estrutural e preparar a alteração que se antecipa das prioridades da despesa pública com a emergência do custo (crescente) associado a uma população cada vez mais envelhecida.

Esta desdobramento de personalidade, consoante se está na oposição ou no governo, metamorfoseando "Mr. Hyde/Dr. Jekyll" ou, no campo dos costumes, os "vícios privados, virtudes públicas", recorda a história do alcoólatra que, em plena luta pela regeneração, ao conseguir passar pela taberna habitual, pela primeira vez sem entrar, diz para consigo: "Conseguiste, entra e bebe um copo para comemorar, porque mereces."

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