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Opinião
25 de Maio de 2005 às 13:59

A direita decidida

Quando falei na esquerda doce prometi referir o seu contraponto, a direita decidida. Imperando na esquerda a doçura, impera hoje em dia na direita o espírito de decisão. É pelo menos o que se pretende dar como imagem.

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Para mostrarem que são algo à esquerda os políticos de direita mostram-se doces, e para mostrarem que o serem de esquerda não os impede ser credíveis os políticos querem-se mostrar decididos.

Mas se bem virmos existem apesar de tudo grandes diferenças entre a esquerda doce e a direita decidida.

Já vimos que a esquerda doce é algo monótona, uniforme, sob a capa de divisões partidárias. O que a caracteriza é a submissão aos Estados Unidos, a proximidade com o fascismo paternalista e o facto de ser herdeira do espírito colonial.

Que se passa com a direita decidida?

É evidente que alguma dela é submissa aos americanos, seja quando apoia a guerra ao Iraque mas sobretudo quando apoia a entrada da Turquia na Europa ou a multiculturalização da Europa. É evidente que muita dela se aproxima igualmente do fascismo paternalista quando invoca uma política moral. É o caso quando se vêem criaturas afirmarem que têm alto sentido de dever porque foi o que os pais lhes ensinaram, ou dislates quejandos. É que parece que os respectivos pais lhes esqueceram de ensinar que quem tem um alto sentido de dever não o apregoa. E muitos deles têm espírito colonial, mais que por serem saudosos dele, por quererem impor o multiculturalismo na Europa, rigidificando «culturas» primitivas incrustadas pela emigração.

É verdade. Mas se virmos o pano de fundo que atravessa a direita decidida é a sua imensa diversidade e fragmentação. Sendo a esquerda doce monótona, é fácil para alguém que não seja analfabeto em História perceber quão enfadonha é. Fácil, digo eu, mas tendo em conta o analfabetismo histórico que grassa, raríssima visão. Já a direita decidida é muito mais imprevisível, mais caótica, mais difícil de delimitar nos seus traços gerais.

O que caracteriza a direita decidida é o de querer mostrar que decide. Por isso mostra muitas decisões. A esquerda doce diz reflectir e ter sentimentos e a direita decidida mostra que quer produzir resultados. Como a ineficácia da política é hoje lugar comum, o cidadão sente-se satisfeito por ver resultados. O problema é que é preciso ver se esses resultados são bons... ou péssimos. Um político ineficaz tem ainda a remota possibilidade de ser inofensivo, um que anseia pela eficácia é geralmente mais perigoso.

A esquerda doce quer estar sempre na razão, mesmo contra o povo, mesmo contra as maiorias. É dogmática e obcecada por ter razão. A direita decidida não é mais liberal, é apenas perplexa perante as ideias. Ambas desprezam o pensamento, a primeira por se sentir grávida dele, a segunda por dele se sentir órfã.

Mas se bem virmos, se pudemos falar da esquerda doce sem referir a direita decidida, é impossível falar da direita decidida sem falar da esquerda doce. É que a direita decidida é parasitária. Tendo falta de ideias vai parasitar a todos os lados, e mesmo à esquerda doce, toda a espécie de ideias. A direita decidida decide, ou pelo menos gosta de mostrar que o faz, sem ideias. Defende tanto o capitalismo como o ataca, é a favor da Europa como contra, arvora a bandeira nacional como a menospreza, quer multiculturalismo como o tem em abominação, as desigualdades sociais são tanto a sua prioridade como alvo do seu desprezo. A esquerda doce é sacerdotal, obcecada em ter razão, a direita decidida é comerciante, quer ver resultados.

O que tem a esquerda doce de idolatria das ideias, tem a direita decidida de perplexidade perante elas. Irritada por natureza, filha do agastamento, anuncia-se como uma forma alternativa de alergia. Sob o ponto de vista anatómico a esquerda doce é um sorriso alvar, a direita decidida é uma erupção cutânea. Mais que uma ideia é uma psoríase política.

A esquerda doce quer ter razão, é obcecada por a ter e a doçura aparente apenas esconde um agastamento crónico. A direita decidida não está de todo preocupada em ter razão, mas apenas se ocupa da acção, esse o brasão que a legitima. Não é de estranhar por isso que a direita decidida seja herdeira do contestatário, do monge giróvago, do opositor. Mesmo quando no governo, se se cala, a direita decidida está sempre na oposição na alma. Na sociedade a composição destas forças é a de uma fonte de inércia puxada por muitos cavalos que se afirma em todas as direcções.
A direita decidida mais recente nasceu com a queda do muro de Berlim. Findos os quadros ideológicos tradicionais, decide que ter razão não é assim tão importante. Mais importante é obter resultados. Não é realidade nova na História. Os Poujadismos, os Boulangismos, Mário e Sylla já são exemplos antigos, desde os anos de 1950 até ao século XIX e mesmo até à Antiguidade. Agesilas, rei de Esparta, é um dos seus antepassados. A mediocridade peca sempre por repetição.

Mas a verdade é que a direita decidida esqueceu-se que o muro de Berlim caiu para os dois lados, e ingrata que é, ignora que, se pôde ter a força que tem, deveu-se isso ao facto de a direita tradicional, ideológica, ter caído com o dito Muro.

A direita decidida não tem hoje no entanto o monopólio da grosseria. Foi adoptada pelas terceiras vias britânicas ou alemãs em que sob o nome do pragmatismo todos os valores se tornam vendáveis.

Percebo que o leitor se sinta perdido. Em poucos artigos como este o obriguei a saltitar de um tópico para o outro, de um aspecto para o outro, negando o que antes parecia dar a entender, afirmando, mas com reservas, o que nem sequer estava indiciado. É que foi minha intenção fazer o leitor passear pelo mundo mental da direita decidida. Os autores medievais faziam o espelho dos príncipes. A direita decidida tem como paradigma o jogo de espelhos. Nada está onde parece estar, tudo muda de posição, ou melhor, o que a caracteriza é o perpétuo movimento de quem é destituído de presença.

O problema da direita decidida não é o pragmatismo, nem a sua ideologia, porque é carente de um e de outra. Mas a sua permanente ausência. Está sempre visível onde não está, é uma simples miragem, um reflexo enganador. Proteu é o seu deus e o seu fetiche. Define-se sempre por referência e por mero reflexo exactamente quando quer marcar a diferença por uma mais intensa presença no espaço público. Se o seu lema é «existimos» é porque tem dúvida que tal aconteça. Grosseira por nascimento, assim como certa esquerda o é por adopção, não se pode escusar ao uso arbitrário do poder.

Seja em Itália, seja em Portugal, seja em Espanha, seja por adição no Reino Unido, na Alemanha, nas instituições comunitárias ou alhures, a direita decidida mostra apenas uma força, a da lapa. Incrusta-se na democracia, usa-a para se proteger contra os embates, mas nada tem a lhe propor. Recentemente Berlusconi fez uma reforma fiscal que lhe valeu os encómios da sua própria imprensa. O cidadão comum poupou menos de cinco euros em certos casos com essa imensa reforma fiscal. Outros invocam a independência nacional apenas para esconder a sua profunda submissão aos americanos. Outros ainda arvoram-se em paladinos da Europa apenas para poderem deslocalizar responsabilidades.

Porque a direita decidida vive bem com as várias deslocalizações. Não estando ela presente em parte nenhuma, imenso vácuo de ideias e de personalidades, o seu efeito é o de aspirar o espaço público. O efeito conjunto da esquerda doce e da direita decidida é desastroso nesse mesmo espaço público. A primeira enche-o de balões festivos, com luz fátua. A segunda aspira o que haja de ideias e pessoas no mesmo. Um cenário grotesco. Sobre o pavimento vazio de vida, por cima de um desterro árido e sem gente, acendem-se luzinhas festivas em honra de deus nenhum e para gáudio de ninguém.

Que fauna fica então nos partidos com vocação de poder? Se a esquerda decidida gera o modelo do sacerdote, do provedor da moral pública, e a direita decidida o modelo do guerreiro, que espécime se forma nesse vazio? Prometo nas próximas núpcias levar o leitor ao teatro anatómico onde o dissecaremos. Mas apenas posso anunciar que se levanta de madrugada na floresta não como orvalho, mas como líquen; um mostrengo, de que me limitarei por agora a referir o nome: o de diabrete.

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