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A Aberração Constitucional

Como muitos já escreveram, o Portugal político vive de forma esquizofrénica entre as bondades da maioria absoluta e da estabilidade e as maravilhas dos governos minoritários e do diálogo parlamentar. Governos com uma maioria absoluta de um só partido acabam...

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Como muitos já escreveram, o Portugal político vive de forma esquizofrénica entre as bondades da maioria absoluta e da estabilidade e as maravilhas dos governos minoritários e do diálogo parlamentar. Governos com uma maioria absoluta de um só partido acabam sempre numa ânsia de governos sem maioria. Infelizmente este ciclo que vamos repetindo cada dez anos é, em parte, a consequência de um conjunto de aberrações constitucionais que ninguém quer mudar.

Quando um partido tem maioria absoluta (como o PSD em 1987-1995 e o PS em 2005-2009), o nosso regime dito semi-presidencial transforma-se na verdade num caudilhismo do primeiro-ministro. Esse caudilhismo resulta da organização centralizada dos partidos políticos (onde os boys e as girls dependem dos favores dos líderes e em que uma cultura interna de diversidade e divisão de poder não existe) e das regras constitucionais que permitem o apagamento do Parlamento e do Presidente. No nosso sistema de caudilhismo do primeiro-ministro não existe uma verdadeira separação de poderes, pois ele acumula na realidade o poder legislativo e o poder executivo, sendo o poder judicial débil e fraco como manda a tradição francesa tão apreciada. Evidentemente que existem algumas limitações práticas, o Presidente pode sempre incomodar um pouco, o Tribunal Constitucional pode criar algumas dificuldades aqui e ali, mas a total instrumentalização do Parlamento chega a ser chocante.

Quando o sebastianismo da maioria absoluta dá lugar ao autismo de quem governa, chega a hora de um governo minoritário. Ao contrário da esmagadora maioria dos países desenvolvidos, a nossa Constituição não impõem um governo de coligação ou resultante de uma incidência parlamentar negociada. O primeiro-ministro não é eleito pelo Parlamento e o programa de governo não tem que ter a confiança do Parlamento. Podemos ter pois a aberração de um governo que entra em funções sem orçamento e com um voto de desconfiança do Parlamento (mas sem consequências se a maioria contra o programa do governo não chega aos 116 deputados em efectividade de funções).

A desculpa para as nossas aberrações constitucionais é a tese de que semi-presidencialismo procura evitar os excessos do parlamentarismo da 1ª República (governos instáveis e totalmente dependentes dos caprichos partidários) e os excessos de um presidencialismo de primeiro-ministro no Estado Novo (evitar a concentração de poderes no executivo).

Acontece que tanto a Alemanha como a Espanha, por exemplo, tinham exactamente o mesmo problema e encontraram soluções constitucionais muito mais adequadas que essencialmente forçam governos com apoio estável no Parlamento. No caso alemão, com coligações formais muitas vezes a contra-gosto e após uma necessária mudança de líder. No caso espanhol. com incidências parlamentares sustentáveis e cedência importantes dos dois grandes partidos. Nada disso acontece em Portugal.

A realidade portuguesa é que o nosso desenho constitucional actual resulta da necessidade de permitir ao PS formar governo sem o apoio do PCP e agora do BE. Percebe-se que os interesses instalados, por razões diversas, sempre procuraram que o PS nunca chegasse a qualquer tipo de acordo parlamentar à sua esquerda. Acontece que tal desenho institucional criou vários problemas. Primeiro, governos minoritários fracos que não estão em posição de resolver a situação de extrema dificuldade que o país atravessa, bem entrado que está num processo de empobrecimento relativo. Segundo, acantonou o PCP e agora o BE, de tal forma que qualquer experiência de esquerda plural é hoje muito díficil. Terceiro, sustentou e sustenta um bloco central de interesses que permite a estabilidade económica e social da elite dominante mas não ajuda o desenvolvimento económico.

Curiosamente nenhum partido tem proposto realmente mudar a realidade constitucional. De vez em quando aparece a ideia da moção de censura construtiva mas esta não faz nenhum sentido quando o Parlamento não elege o primeiro-ministro (como na Alemanha). Também se fala de mudar o sistema eleitoral mas aí o problema é a possível redução do caudilhismo interno dos partidos ou a abertura a independentes que ameacem o monopólio partidário. Na verdade, é mais provável que quando o novo governo Sócrates caia no Parlamento antes do final da legislatura, se volte a falar das enormes virtudes de uma maioria absoluta em vez reformar o nosso sistema político. E o ciclo continuará!



Professor de Direito da University of Illinois
nuno.garoupa@gmail.com
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