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A lógica da política caseira

Qualquer reforma do Estado sem uma reforma da classe política será apenas para troika ver. A novidade parece ser que a troika já não se deixa enganar assim tão facilmente.

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Numa interessante entrevista muito recente, o historiador Rui Ramos explicava que "a classe política sofre do medo de ver surgir um novo Cavaco Silva. Em 85, depois da austeridade conduzida pelo Bloco Central, eis que alguém vai para o governo, apanha uma conjuntura diferente e fica no poder dez anos. Esse é o receio que existe agora."

 

Este receio explica em boa parte o autismo da classe política portuguesa. Na verdade, Passos Coelho pensou que podia gerir a austeridade a tempo de apanhar uma boa conjuntura em 2015 e fazer duas legislaturas (aquele mito que a direita inventou dos dois primeiros anos de reformas impopulares seguidos de dois anos de benesses; falhou em 2004 e vai falhar outra vez). Agora Seguro acha que o PSD pagará a factura da austeridade e é ao PS que desta vez vai ser a sorte grande. Para desgraça dele, tanto Costa como Sócrates pensam o mesmo e portanto perfilam-se no horizonte. O CDS, com medo de ficar excluído da taluda e voltar ao partido do táxi, anda com um pé dentro e outro fora.

Tendo Rui Ramos razão na análise que faz, o grande problema é que são receios infundados, mas que condicionam a política portuguesa de forma negativa. Por um lado, aquela história de 85 não se vai repetir. Como recentemente afirmou, no El País, Hans-Werner Sinn, o principal inspirador da actual política alemã (que certamente vai ser sufragada nas urnas em Setembro por muito que desgoste aos nossos senadores), a austeridade no Sul da Europa é para ficar no mínimo dez anos. E ainda só passaram dois. Certamente o PS ganhará em 2015 ou mesmo antes (a maior prova da incompetência da direita será o partido que levou Portugal ao abismo regressar ao poder em menos de quatro anos com uma maioria sólida), mas logo vai "descobrir" que afinal a situação financeira e económica é pior do que pensavam, e vira o disco e toca o mesmo. Um reprise já habitual.

Por outro lado, como os grandes partidos continuam numa lógica de austeridade passageira, reformas a fingir e quem-mais-mente-ganha-as-eleições, a classe política é incapaz de se regenerar e compreender a nova realidade quer nacional, quer europeia. A reforma do Estado é muito necessária. Mas a reforma do Estado só pode ser feita depois da reforma da classe política. O actual Estado foi desenhado para alimentar as clientelas dos partidos e evidentemente não pode ser desmontado por quem mais dele se serve. Qualquer reforma do Estado sem uma reforma da classe política será apenas para troika ver. A novidade parece ser que a troika já não se deixa enganar assim tão facilmente. Promessas de legislação e novos pacotes pseudo-reformistas são agora insuficientes para os nossos credores. Vamos ver pois como irá a classe política "inventar" uma reforma do Estado que seja suficiente nas formas para convencer a troika mas, ao mesmo tempo, mantenha tudo exactamente na mesma naquilo que interessa, isto é, o Estado ao serviço dos lóbis que rendem votos. Qualquer reforma profunda do Estado seria o suicídio da actual classe política e há poucos exemplos passados disso. Assim sendo, a única certeza é que não haverá reforma do Estado.

Professor de Direito da University of Illinois

nuno.garoupa@gmail.com

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