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[254.] Galp - Selecção Nacional (continuação)

A relação entre os “portugueses” e o “seu” símbolo nacional, a selecção de futebol, é do domínio da religião: a Selecção Nacional, símbolo quase elevado pela sociedade ao estatuto do hino ou da bandeira nacional, é um totem, isto é, um objecto ou ser que

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A relação entre os “portugueses” e o “seu” símbolo nacional, a selecção de futebol, é do domínio da religião: a Selecção Nacional, símbolo quase elevado pela sociedade ao estatuto do hino ou da bandeira nacional, é um totem, isto é, um objecto ou ser que representa a colectividade e que é adorado nessa qualidade, no sentido em que desde há muito se tornou nesse objecto que “nos” representa sem discussão quanto a essa capacidade; outras capacidades da Selecção são muito debatidas, mas não essa; os jogadores, tal como neste anúncio, adquirem qualidades de super-homens, isto é seres que partilham características com os deuses. Mas eles só são super-homens porque são investidos nisso, por mimetismo, pela verdadeira entidade divina: a sociedade nacional.

O autocarro que transporta os jogadores é também um totem; foi-o claramente em 2004 e volta a sê-lo neste anúncio. O sociólogo francês Durkheim escreveu em 1912 que em momentos de “entusiasmo geral, coisas puramente laicas por natureza” são transformadas “pela opinião pública em coisas sagradas”. Como os carros nas religiões, o autocarro da Selecção representa um instrumento da elevação da colectividade na viagem a caminho da consagração, transportando a força cósmica da nação. É um “carro solar” que trará a vitória, como o de Marte na guerra e o de Cibele prometendo grandes searas. A canção de Bob Dylan que acompanha a viagem da Selecção é por isso extremamente adequada: fala dos caminhos de vitória, Paths of Victory, ao cabo de trabalhos e dificuldades: “O trilho é poeirento / E pode ser duro o caminho, / Mas melhores estradas nos esperam / E rapazes já não estão longe. / Veredas de sarilhos, / Trilhos de batalhas, / Caminhos de vitória / Nós percorreremos.”
A estes versos corresponde uma melodia confiante, mas suave, nem triunfalista nem violenta, porque a vitória é interior, introspectiva: venceremos sempre se vencermos os nossos fantasmas e nós, os rapazes, estivermos juntos. A melodia de Dylan é do tipo folk, popular, cantada e tocada no piano e na harmónica por ele nesse registo (a canção é de 1964, da fase folk de Dylan). A música, corresponde, pois, inteiramente ao objectivo de esperança mas sem expectativas exageradas. O poema integral de Dylan (em www.bobdylan.com/moderntimes/songs/victory.html) é também um poema de viagem, de esperança no futuro mesmo que não saibamos se se concretiza, apenas que “há uma estrada mais limpa à espera / com as cinzas atiradas p’rás bermas”.

No anúncio retoma-se a multidão que saudou e acompanhou o autocarro em 2004, dando-lhe aqui um papel igualmente activo, o de o empurrar. A Selecção, diz o anúncio, só pega de empurrão, porque é a nação que lhe dá a força extra, a força de tipo religioso. Os planos em que se vê a multidão destacam a acção conjunta (todos empurrando todos e o autocarro), o esforço enorme, o sacrifício (um homem cai ao chão), a solidariedade (ajudam-no a levantar-se). A multidão apresenta características que há mais de um século a sociologia lhe atribuiu: a unidade, a unanimidade, a generosidade, a paciência. A multidão não tem líder porque é a nação em si. No fim, é recompensada com o êxito, a chegada ao destino. Esta é a mesma multidão nacional que Thomas de Quincey representou no seu texto de 1849, “The English Mail-Coach”. Julgo que terá sido o primeiro a escrever com grande profundidade sobre a multidão representativa da nação, a multidão nacional, e ainda por cima em momento de auto-adoração através da adoração do totem momentâneo, a mala-posta.

Como crítico, considero o anúncio da Galp altamente conseguido e como investigador da multidão nacional e como profundo admirador de Bob Dylan há mais de 40 anos considero-o muito gratificante. Mas a minha tarefa de crítico não terminou. O anúncio tem defeitos dignos de registo. Em primeiro lugar, do ponto de vista material, reduzir a selecção a três jogadores foi de uma incompetência evitável. Sabemos que aqueles três estão lá no lugar de todos os seleccionados, mas deve haver um acerto mínimo entre as realidades e representada. Em segundo lugar, a simbologia escravos/senhores na representação da relação nação/selecção é exagerada. Não esperaria isso numa criação tão sofisticada como esta. Quem não gostar de futebol e tenha dificuldade em aceitar a Selecção como um símbolo ao nível da bandeira e do hino, ou quem, simplesmente, não goste das unanimidades antipluralistas da sociedade do espectáculo, sentir-se-á vilmente explorado como um dos escravos que se submetem ao poder dos senhores da Selecção. Uma coisa é ver-se sistematicamente representado numa nação futebolística sem direito de opção; outra é ver essa nação como escrava do futebol e sentir-se realmente explorado. Esta interpretação do anúncio até está certa e adequada ao que se vê, mas não é agradável para o espectador desalinhado com a ditadura do futebol e não é do interesse do anunciante.

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