Opinião
Um conceito de serviço público de televisão
As forças e os argumentos que agora se alinham contra a privatização da RTP vêm de longe. Já estavam nas mesmas posições quando há 30 anos se discutia a introdução da televisão privada.
A batalha pela privatização da RTP tem-se arrastado e é de resultados incertos. Mas os termos em que esta batalha tem sido travada não tem ajudado a pensar os contornos do que deveria ser um verdadeiro serviço público de televisão.
As dificuldades do processo são de dois níveis: por um lado, a resistência dos interesses e por outro a inexistência dum pensamento claro sobre a natureza de um serviço público exigente e necessário.
Os conservadores na prática – apesar de abundante prosápia sem consequências – identificam serviço público com propriedade estatal dos canais; por vezes completam sublinhando que pode ser necessário o Estado disciplinar melhor o trabalho e os conteúdos dos canais públicos. Como contraponto, muitos defensores da privatização afirmam não saber o que é o serviço público, supondo que aquela é, só por si, a panaceia para os problemas que o nosso sector televisivo enfrenta; por vezes concedem que talvez seja necessário os poderes públicos definirem um conjunto de conteúdos que os privados se deveriam comprometer a passar.
A verdade é que se impõe a privatização total da RTP ao mesmo tempo que se redefine um efectivo serviço público com contornos muito diferentes dos que actualmente existem.
Um serviço público de televisão deve ter 4 componentes:
Primeiro: multiplicar os canais em sinal aberto para permitir a livre escolha e diversidade aos consumidores, protegendo as minorias no acesso aos conteúdos. A actual existência de apenas 4 canais abertos é uma situação intolerável que tem de ser ultrapassada (na Europa o número "normal" é da ordem das dezenas). A discussão sobre o serviço público de televisão deve começar por aqui e não por saber o que um grupo de iluminados nos deve servir com o dinheiro público e num contexto de restrição das escolhas.
Segundo: garantir a cobertura dos canais livres em todas as regiões, protegendo as minorias na esfera da recepção do sinal.
Terceiro: aumentar a concorrência entre os operadores e a independência entre o distribuidor do sinal e os operadores.
Quarto: assegurar a natureza educativa e a decência da televisão, combatendo a proliferação da violência, sexo, sensacionalismo e a ideologia do politicamente correcto1. Isto far-se-ia através da formação obrigatória dos trabalhadores em actividade nas televisões, os quais só poderiam exercer na posse de diploma de aptidão, revogáveis em caso de infracção grave. Seria um estatuto semelhante ao existente para profissões de grande responsabilidade como, por exemplo, os médicos.
O problema do carácter deseducativo da TV - concorrente mortífero da família e da escola – não tem sido enfrentado. A privatização (não concessão, qual nova PPP) pode ser posta ao seu serviço canalizando os recursos libertos para o financiamento desta nova função do Estado.
O grupo defensor do velho serviço público visa apenas manter a propriedade estatal com a qual mantém relações privilegiadas. É brando, transige e compreensivo perante a transgressão dos valores essenciais de educação e decência perpetrada constantemente por canais públicos e privados. Só não toleram a privatização.
O poderoso lóbi conservador mistura 3 elementos altamente convenientes:
– Operadores incumbentes de fortes interesses económicos;
– Grupo central coeso e permanente de ideólogos e agentes na área audiovisual;
– Grupo de várias individualidades, que vai variando em número e composição; geralmente são ingénuos úteis para mascarar o essencial do que está em causa. Muitos estão apavorados com a aparente diminuição dos instrumentos de acção do Estado, agarram-se ao que ainda existe sem curar (ou minorando a importância) da natureza dos conteúdos que esses instrumentos emitem.
O grupo aparece com regularidade para, com sucesso por enquanto, marcar a agenda e acabar por impor as suas posições. Agora destilou um novo manifesto "Em defesa do serviço público de rádio e de televisão", pretexto para marcar e pressionar as instituições. A rapidez com que foi recebido por altas entidades não augura nada de bom sobre o que está em preparação. Conseguiu neutralizar o governo Barroso. E com o actual governo está confiante em obter igual resultado.
As forças e os argumentos que agora se alinham contra a privatização da RTP vêm de longe. Já estavam nas mesmas posições quando há 30 anos se discutia a introdução da televisão privada. Toda a esquerda estava inicialmente contra e muita direita tinha dúvidas, tal como agora. No fim da década de 1980, quando a direcção do PS mudou de posição, grande parte (a maioria?) do partido estava contra. A mudança imposta por Constâncio – enfiando a TV privada pela goela abaixo do PS - custou-lhe o lugar. Quando chegou, Sampaio estrebuchou, declarou-se contra, mas não foi capaz de voltar atrás. Os tempos mudaram, a tecnologia mudou e as possibilidades de liberdade aumentaram. Mas os argumentos - e até muitos dos personagens - são os mesmos.
Como noutros sectores é preciso mudar. A insistência na RTP estatal como instrumento de serviço público tem sido um falhanço. Face aos operadores privados, a função de diferenciação que a marca é um mero exercício de propaganda dos governos.
Assim, impõe-se privatizar e usar a poupança na montagem dum verdadeiro serviço público cujo esboço apresento acima. De facto, nenhuma das 4 componentes deste serviço está actualmente assegurada.
Esta é a questão de solução mais difícil. A melhor reflexão sobre o assunto é a Karl Popper, que aqui adopto. Este chegou a propor a censura – que imediatamente rejeitou – como provocação para chamar a atenção para o problema. A seguir elaborou uma proposta, eficaz e compatível com a democracia e a liberdade, que pode ser seguida num livrinho incontornável traduzido para português: Karl Popper, "Uma lei para a televisão" in: Karl Popper, John Condry, Televisão: "Um Perigo Para a Democracia", Gradiva, Lisboa, 1995.
Economista e professor do ISEG
majesus@iseg.utl.pt
As dificuldades do processo são de dois níveis: por um lado, a resistência dos interesses e por outro a inexistência dum pensamento claro sobre a natureza de um serviço público exigente e necessário.
A verdade é que se impõe a privatização total da RTP ao mesmo tempo que se redefine um efectivo serviço público com contornos muito diferentes dos que actualmente existem.
Um serviço público de televisão deve ter 4 componentes:
Primeiro: multiplicar os canais em sinal aberto para permitir a livre escolha e diversidade aos consumidores, protegendo as minorias no acesso aos conteúdos. A actual existência de apenas 4 canais abertos é uma situação intolerável que tem de ser ultrapassada (na Europa o número "normal" é da ordem das dezenas). A discussão sobre o serviço público de televisão deve começar por aqui e não por saber o que um grupo de iluminados nos deve servir com o dinheiro público e num contexto de restrição das escolhas.
Segundo: garantir a cobertura dos canais livres em todas as regiões, protegendo as minorias na esfera da recepção do sinal.
Terceiro: aumentar a concorrência entre os operadores e a independência entre o distribuidor do sinal e os operadores.
Quarto: assegurar a natureza educativa e a decência da televisão, combatendo a proliferação da violência, sexo, sensacionalismo e a ideologia do politicamente correcto1. Isto far-se-ia através da formação obrigatória dos trabalhadores em actividade nas televisões, os quais só poderiam exercer na posse de diploma de aptidão, revogáveis em caso de infracção grave. Seria um estatuto semelhante ao existente para profissões de grande responsabilidade como, por exemplo, os médicos.
O problema do carácter deseducativo da TV - concorrente mortífero da família e da escola – não tem sido enfrentado. A privatização (não concessão, qual nova PPP) pode ser posta ao seu serviço canalizando os recursos libertos para o financiamento desta nova função do Estado.
O grupo defensor do velho serviço público visa apenas manter a propriedade estatal com a qual mantém relações privilegiadas. É brando, transige e compreensivo perante a transgressão dos valores essenciais de educação e decência perpetrada constantemente por canais públicos e privados. Só não toleram a privatização.
O poderoso lóbi conservador mistura 3 elementos altamente convenientes:
– Operadores incumbentes de fortes interesses económicos;
– Grupo central coeso e permanente de ideólogos e agentes na área audiovisual;
– Grupo de várias individualidades, que vai variando em número e composição; geralmente são ingénuos úteis para mascarar o essencial do que está em causa. Muitos estão apavorados com a aparente diminuição dos instrumentos de acção do Estado, agarram-se ao que ainda existe sem curar (ou minorando a importância) da natureza dos conteúdos que esses instrumentos emitem.
O grupo aparece com regularidade para, com sucesso por enquanto, marcar a agenda e acabar por impor as suas posições. Agora destilou um novo manifesto "Em defesa do serviço público de rádio e de televisão", pretexto para marcar e pressionar as instituições. A rapidez com que foi recebido por altas entidades não augura nada de bom sobre o que está em preparação. Conseguiu neutralizar o governo Barroso. E com o actual governo está confiante em obter igual resultado.
As forças e os argumentos que agora se alinham contra a privatização da RTP vêm de longe. Já estavam nas mesmas posições quando há 30 anos se discutia a introdução da televisão privada. Toda a esquerda estava inicialmente contra e muita direita tinha dúvidas, tal como agora. No fim da década de 1980, quando a direcção do PS mudou de posição, grande parte (a maioria?) do partido estava contra. A mudança imposta por Constâncio – enfiando a TV privada pela goela abaixo do PS - custou-lhe o lugar. Quando chegou, Sampaio estrebuchou, declarou-se contra, mas não foi capaz de voltar atrás. Os tempos mudaram, a tecnologia mudou e as possibilidades de liberdade aumentaram. Mas os argumentos - e até muitos dos personagens - são os mesmos.
Como noutros sectores é preciso mudar. A insistência na RTP estatal como instrumento de serviço público tem sido um falhanço. Face aos operadores privados, a função de diferenciação que a marca é um mero exercício de propaganda dos governos.
Assim, impõe-se privatizar e usar a poupança na montagem dum verdadeiro serviço público cujo esboço apresento acima. De facto, nenhuma das 4 componentes deste serviço está actualmente assegurada.
Esta é a questão de solução mais difícil. A melhor reflexão sobre o assunto é a Karl Popper, que aqui adopto. Este chegou a propor a censura – que imediatamente rejeitou – como provocação para chamar a atenção para o problema. A seguir elaborou uma proposta, eficaz e compatível com a democracia e a liberdade, que pode ser seguida num livrinho incontornável traduzido para português: Karl Popper, "Uma lei para a televisão" in: Karl Popper, John Condry, Televisão: "Um Perigo Para a Democracia", Gradiva, Lisboa, 1995.
Economista e professor do ISEG
majesus@iseg.utl.pt
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