Opinião
A Economia Política da censura digital
A internet e as redes sociais serviram para quebrar a hegemonia e a centralização na propagação de ideias que os media tradicionais proporcionam. É um movimento que - apesar dos incidentes de percurso – parece, felizmente, imparável.
A recente irrupção da censura nas redes sociais levaram muitos a sublinhar os perigos da censura privada e a avançar com a necessidade de regulação pública daquelas empresas.
Não se pode dizer que foi uma boa ideia(1) mas não deixa de ser uma acção legítima das empresas e, em certa medida, inevitável.
Aquela censura é legítima e não há razão para mais regulação púbica, com uma excepção importante: a necessidade de aplicar às plataformas os critérios de responsabilização dos conteúdos há muito aplicados aos media tradicionais. Tal permitiria evitar uma regulação extensiva e contraproducente que, contrariamente ao pretendido, iria reforçar as empresas agora dominantes.
Por um lado, as redes sociais são empresas privadas e têm o direito de decidir escolher os conteúdos que acolhem – não são espaços públicos a necessitar de regulação. Por outro, elas devem ser responsabilizadas pelos conteúdos publicados; a natureza digital e o número de conteúdos e de colaboradores não os deveriam dispensar de tal; é o única ponto onde a intervenção estatal suplementar se justifica, aliviando tudo o resto.
A posição que exige o reforço da regulação pública usa dois argumentos principais. Por um lado, tratando-se de empresas dominantes, com enorme poder de mercado, as suas plataformas tornaram-se espaços públicos onde a regulação extensiva se impõe. Por outro, o problema desta ameaça tecnológica não é o controle ser de privados mas o facto destas empresas serem governamentalidades(2), impondo-se também, por isso, uma mais regulação pública.
Porém, contrariamente ao imaginado por muitos, não foram as políticas públicas antitrust - ou outra regulação - que têm levado a destronar as empresas dominantes. Os exemplos abundam e repetem-se com regularidade impressionante. Lembremos só alguns exemplos "analógicos": GM, GE Kodak, Xerox, e PanAm. No sector informático os movimentos são ainda mais rápidos. Nos anos 1980, lembre-se o que se dizia da IBM. Nos anos 1990, a Microsoft era a empresa indestronável. Já nos anos 2000, a Yahoo e a Orkut também foram consideradas imbatíveis. Foi a inovação tecnológica em contexto de concorrência em mercado aberto que tudo destronou.
Uma visão alargada mostra que o que garante vida longa às grandes empresas é justamente aquilo que os muitos agora estão pedindo: a intervenção do governo. As alternativas não são fáceis nem imediatas, mas são possíveis. A única intervenção necessária é no sentido de eliminar os seus privilégios, nomeadamente – como já referi - os que as isentam da responsabilidade pelos conteúdos ao arrepio do que ocorre nos media tradicionais. Ao contrário, outra regulação mais apertada que lhes imponha dificuldades na exclusão de conteúdos dificultará o aparecimento de novas empresas e reforçará as agora dominantes.
No curto prazo, novas empresas surgirão que desafiarão as agora dominantes. O mercado livre pode, à medida das necessidades do consumidor, permitir criar múltiplas redes sociais com diferentes ideologias e, com isso, derrubar as atuais redes sociais, dominantes até aqui. O processo de censura privada que estas agora desencadearam acelerará este processo.
Acresce que, no médio prazo, a internet descentralizada é o provável futuro, permitindo que não se dependa de serviços centralizados de hospedagem para poder publicar, com os conteúdos dos sites hospedados nos próprios computadores individuais.
A internet e as redes sociais serviram para quebrar a hegemonia e a centralização na propagação de ideias que os media tradicionais proporcionam. É um movimento que - apesar dos incidentes de percurso – parece, felizmente, imparável.
(1) Não é uma boa notícia, porque pode iniciar um percurso indesejável nas redes sociais: a balcanização ideológica. Se cada grupo ideológico se isolar na sua própria rede social, o debate tenderá a diminuir perigosamente.
(2) O conceito de governamentalidades ("governmentality") foi proposto por Foucault nos anos 1970 para designar entidades que, ainda que privadas, funcionam como apêndices do Estado (Michel Foucault, Security, Territory, Population, Lectures at the Collège de France, 1977-78). Tem sido recentemente recuperado para analisar a governamentalização da grande empresa privada. Para alguns - invertendo as intenções iniciais de Foucault - esta governamentalização da indústria privada, levando ao crescimento do Estado por meio de extensões supostamente privadas, tem mais relevância que o processo de privatização de entidades públicas que, em aparentemente contradição, ocorre paralelamente.
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico