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Como acabar com o euro - Versão 3

A perpetuação dos juros artificialmente baixos é um factor de desagregação e desigualdade na UE, prejudicando, perversamente, sobretudo os países do Sul, ao contrário do pretendido.

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150 economistas fizeram publicar em certa imprensa internacional, em 5 de Fevereiro, uma proposta que podemos resumir (sic): "O BCE compromete-se a apagar as dívidas públicas que detém (ou a transformá-las em dívidas perpétuas sem juros), enquanto os Estados se comprometem a investir os mesmos montantes na reconstrução ecológica e social."

Pretendiam, segundo se depreende no fraco debate que se seguiu, provocar "surpresa" e "comoção" entre os "ortodoxos".

 

A ideia, no essencial, visa alinhavar uma nova via para acabar com o euro. Tecnicamente a proposta é indigente, mas politicamente é de uma grande coerência e de encanto garantido.

 

A ideia não é nova e não surpreendeu nem comoveu vivalma. Trata-se de uma conhecida proposta, desde 2017, de Luc Mélenchon, líder do partido de extrema-esquerda La France Insoumise, adoptada por quase toda a extrema-esquerda europeia vergada pela popularidade do euro e forçada ao uso de tácticas fabianas.

 

É uma proposta de aplicação impossível. Mas, se aplicada seria desastroso para o euro, a UE e de efeitos muito agravados para Portugal.

 

Os proponentes provêm, em geral, da extrema-esquerda, embora, como é habitual, sejam acompanhados por muita direita estatista. É possível estilizar os seus percursos no que concerne ao euro.  

 

Não por acaso, foram, primeiro, antes da sua introdução, explícitos e activos opositores ao euro. Depois, foram acérrimos defensores da saída por volta da crise de 2008 (alguns fizeram cálculos e planos de saída hilariantes). Quando da crise específica do euro, no início da década 2010, viraram arautos do "não pagamos" e esmoreceram a oposição explícita ao euro. Agora, com a pandemia, sacaram da magia do apagão pelo BCE. Não pode deixar de se notar uma notável coerência, na senda leninista de enfraquecer a moeda para atacar o sistema capitalista.

 

As críticas "ortodoxas" à proposta que mais se ouvem passam ao lado do essencial e são facilmente rebatidas. Lembro, sem agora me deter, os seguintes perigos anunciados: a inflação, a desvalorização do euro, o aumento dos juros, a monetização da dívida, a retirada da independência ao BCE, a violação dos tratados e dos acórdãos do Tribunal de Justiça da UE.

São riscos incertos, inexistentes ou mesmo benignos.

 

Os argumentos certos contra as ideias do manifesto são outros.

 

A Alemanha não permitirá este passo, como permitiu o passo de Draghi - agora atacar-se-ia brutalmente o balanço do banco e prolongar-se-ia, indefinidamente, o sacrifício dos aforradores. Numa União imperfeita e instável, isto seria um factor de desagregação e um risco insuportável. Para os autores do manifesto isto não é um risco - é um objectivo.

 

Mesmo se fosse politicamente possível seria, por razões técnicas, desastroso para o euro e a UE. A adopção da proposta seria mais um passo importante para a destruição do euro, coisa que os autores deixaram de propor directa e cruamente, como já o fizeram em tempos, mas que se percebe, perseguem com denodo.

 

Primeiro, a proposta do manifesto conduz à brutal degradação do balanço do BCE, elemento essencial num sistema monetário fiduciário, conduzindo para níveis perigosos a confiança no euro que seria fortemente abalado e até poderia destruí-lo.

 

Segundo, o incumprimento contratual, cuja quebra afectaria a credibilidade de toda a UE. Para além dos tratados entre Estados, está em causa, sobretudo, o compromisso com os agentes utilizadores do euro em todo o mundo que confiaram na garantia de estabilidade do BCE.

 

Terceiro, a degradação do balanço do BCE é um perigo muito acrescido num quadro de comparação com os concorrentes dólar e renminbi. Três factores ameaçam o euro: a economia menos integrada, o poder político mais descentralizado e a queda da influência da EU(1). A UE não tem os graus de liberdade de política monetária dos EUA e da China. Para sobreviver, a UE terá de ter um poder monetário específico de rigor superior ao daquelas duas economias. O relaxamento monetário dos EUA e da China afectam menos as suas moedas, porque não têm os constrangimentos referidos.

 

Quarto, e a mais nociva consequência: a perpetuação dos juros artificialmente baixos é um factor de desagregação e desigualdade na UE, prejudicando, perversamente, sobretudo os países do Sul, ao contrário do pretendido. Tornando a dívida suportável, a quase igualização dos juros e a sua baixa não reduziu, antes agravou, a desigualdade real das economias da UE. Por um lado, por impedir as reformas nos países do sul e assim travar a harmonização de estruturas de política económica. Por outro, por gerar uma colossal distorção e ineficiência na alocação de recursos, muito mais grave no Sul, uma vez que o Norte e centro têm factores de compensação destes efeitos negativos que faltam no Sul.

 

A política de juros baixos do BCE é uma transferência disfarçada de recursos dos países aforradores para os restantes, constituindo uma réplica de igual movimento, este explícito, na área dos fundos comunitários. Nenhum destes movimentos reforçou a convergência na UE, deixando a ideia de que esta forma de transferência de recursos é, não só ineficaz, mas perversa e sugerindo que algo deve ser mudado. Por exemplo, as reformas - igualizando as políticas económicas sobretudo nas áreas mais arcaicas no Sul - deveriam preceder a transferência dos recursos.

 

 

(1)A queda de poder e influência da UE é um dado que pesa, e não pode ser ignorado, exigindo redobrado cuidado com o laxismo na abordagem da política monetária. Aos factores que vêm de trás (como os declínios relativos da produtividade e da inovação, impasse no aprofundamento do mercado único nos serviços) acrescem acontecimentos recentes penalizadores, como o fracasso nas negociações de aquisição da vacina da covid, o Brexit e a paralisia perante claros e repetidos desafios ao estado de direito em certos países do Leste.

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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