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Teodora Cardoso 18 de Dezembro de 2007 às 13:59

2008: O fim da euforia

A viragem de 2007 para 2008 arrisca-se a ficar para a história e não por boas razões. O ano que está a terminar foi marcado por muitos acontecimentos, mas há um – a crise financeira – cujas consequências estão ainda longe de esgotar-se e vão mesmo marcar

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Ao contrário do que sucedeu em crises passadas, esta situa-se no coração do sistema financeiro mundial – os Estados Unidos – e, precisamente aí, a “magia” da manipulação das taxas de juro pelo Fed deixou de funcionar. Na verdade, esta crise deve-se antes ao abuso dessa poção que, associada à desregulação do sistema, gerou uma crise generalizada de confiança dos bancos entre si, a que os instrumentos da política monetária não conseguem pôr termo.

Ao contrário das crises conjunturais ligadas ao abrandamento da actividade económica, à consequente insolvência de alguns agentes e à quebra das cotações das acções, a que é possível responder com os instrumentos macroeconómicos tradicionais, nomeadamente a descida das taxas de juro, na situação actual os bancos americanos criaram e distribuíram em grande escala instrumentos complexos, opacos e desligados de qualquer realidade que não seja a confiança cega em que o Fed conseguiria sempre garantir a subida do valor dos activos. Só essa confiança explica a expansão das hipotecas “ninja” (no “income, no job or assets”) e a sua transformação em títulos com rating AAA, distribuídos por todo o mundo, pelas carteiras das instituições mais variadas. Aceitando a hipótese de que os preços das casas nunca descem, esses títulos eram, de facto, seguros: quando os empréstimos deixassem de ser pagos, executavam-se as hipotecas e o lucro assim obtido era mesmo muito superior às margens que a concorrência se encarregou de minimizar no mercado do crédito à habitação.

O problema estava na aceitação como dogma de uma hipótese que a experiência histórica desmentia: nas décadas de 70, 80 e 90 assistiu-se nos Estados Unidos e na Europa a crises desencadeadas e agravadas pela quebra dos preços das casas, sempre na esteira de períodos de euforia que os tinham feito subir para além do sustentável. No entanto, a fé na magia do Fed e os modelos matemáticos assentes em dados relativos a períodos de meia dúzia de anos, obliteraram essa experiência sob uma capa de cada vez maior complexidade científica que um especialista, Avinash Persaud, acusava, já em 2002, de terem levado a finança moderna a “descrever com grande elegância matemática um mundo que não existia”. Da descrição passou-se rapidamente à acção e os resultados estão à vista.

Os bancos centrais, em especial o Fed, procuram agora recuperar a magia que lhes escapou, mas que só a confiança poderá restituir ao sistema. E para recuperar a confiança será necessário, em primeiro lugar, voltar a garantir a sua transparência. Observando o desenrolar dos acontecimentos, conclui-se que esta foi, de facto, a principal vítima das deficiências da regulação financeira que se foram multiplicando ao longo dos anos e a que os modelos deram uma inestimável ajuda. A intervenção concertada dos bancos centrais, anunciada solenemente em 12 de Dezembro, continuou, pelo contrário, a dirigir-se apenas ao problema da liquidez, a que muitos procuram, desde o início, reduzir a crise. É claro que não há liquidez nos mercados interbancários, mas isso não se deve à acção dos bancos centrais que, bem pelo contrário, tudo têm feito para a criar. A razão sempre esteve na falta de confiança dos grandes bancos internacionais nas suas próprias carteiras e, por maioria de razão, nas dos outros. Não espanta, por isso, o insucesso de mais esta iniciativa.

Há aqui, além de tudo o mais, uma lição de humildade para os economistas e os financeiros que começaram a imaginar que, dominando a matemática, podiam emular os físicos. Não há, é claro, nenhuma objecção ao uso de técnicas e modelos complexos desde que não percamos de vista as realidades com que estamos a lidar. Feliz ou infelizmente, na economia e nas finanças, estas não obedecem às regularidades das leis da física e obrigam os que as estudam a preocuparem-se com fenómenos concretos só muito parcialmente susceptíveis de elegantes descrições matemáticas.  Mas obrigam sobretudo as autoridades responsáveis a não se deixar iludir pela alta tecnologia, esquecendo que, na base do sistema financeiro, tem sempre de estar a confiança em coisas tão pouco matemáticas como a solvência daqueles a quem se concedem financiamentos ou a ética das instituições que o fazem e dos profissionais que nelas trabalham.

Um resultado positivo desta crise pode ser o retorno a esses princípios, evidentemente sem pôr de parte o muito de positivo que as novas tecnologias e a inovação financeira trouxeram. Esta é, contudo, uma agenda complexa, que não se presta às intervenções rápidas nos mercados monetários. Por um lado, supõe a capacidade de distinguir as conclusões científicas sólidas das construções que apenas servem interesses e, por outro, exige o retorno à aceitação de princípios em lugar do simples “cumprimento” da lei, filtrado por advogados que sabem reduzi-lo aos mínimos formais que apenas garantem que é possível estabelecer uma dúvida quanto ao facto da sua letra ter sido infringida. O caminho a percorrer é longo e difícil. Com sorte, assistiremos, em 2008, às primeiras etapas.

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