Opinião
O Orçamento, o Estado social e as instituições
No debate do Orçamento do Estado que se aproxima, vamos repetidamente ouvir argumentar com a incerteza e a gravidade da situação económica decorrentes da pandemia para justificar o agravamento do défice e da dívida pública.
Ouviremos também referir os benefícios esperados do pacote de fundos europeus para fundamentar expectativas optimistas de recuperação. Quanto ao resto, a lógica das decisões e os termos do debate em nada se afastarão daqueles a que há anos nos habituámos e de que resultou a extrema vulnerabilidade da economia – e com ela do Estado social – a qualquer choque adverso. A consolidação do Estado social devia, pelo contrário, estar no cerne desse debate. Esse é o problema técnica e politicamente mais complexo com que o país se defronta e exige parâmetros de decisão muito além daqueles em que se concentra entre nós o debate orçamental.
A dimensão política do problema é evidente. Para a larga maioria da população, o Estado social é o pilar fundamental do regime democrático e assim foi entendido por todos os governos que se sucederam ao 25 de Abril. É simultaneamente um dos pilares da integração europeia, embora esta deixe vasta margem de manobra aos Estados-membros quanto à sua governação. Em Portugal, o peso político da defesa das principais componentes do Estado social – educação, saúde, segurança e protecção social – teve como consequência focar a sua gestão no horizonte de cada legislatura e, dentro dela, no orçamento anual, determinando medidas em função dos ciclos eleitorais e dos compromissos partidários, mas ignorando a evolução de factores que fundamentalmente o afectam. Entre estes destacam-se a demografia e as tecnologias, que evoluem no médio e longo prazo segundo tendências que não dependem da vontade dos governos e que geram impactos positivos e negativos, exigindo uma gestão micro e macroeconómica que, reconhecendo-os, estimule os benefícios dos primeiros e minimize os riscos dos segundos.
Uma gestão focada nos resultados políticos imediatos exclui ajustamentos necessários à exploração dos efeitos positivos e, em vez de estimular decisões que reduzam os riscos, cria a ilusão da capacidade do Estado para os eliminar sem custos para a sociedade. A gestão do investimento público e as políticas conjunturais de estímulo ao consumo ilustraram essa opção a nível macroeconómico. O investimento público rapidamente se concentrou no impacto político imediato, de preferência a opções estruturantes de que dependeria o crescimento a prazo da economia. Simultaneamente, a quebra da poupança, tendo como contrapartida o endividamento externo, aumentou a vulnerabilidade a crises e agravou as suas consequências. No mesmo sentido actuaram, no plano microeconómico, o desinteresse pela competitividade ou a gestão das relações laborais e dos regimes de pensões, incluindo o recurso às reformas antecipadas como mecanismo privilegiado de reestruturação, tanto no sector público como no privado.
A esse modelo de governação pública correspondeu, no sector privado, uma gestão focada nos resultados de curto prazo e na dependência do poder político, que frequentemente os determina. Um erro geralmente apontado à gestão bancária – a deficiente atribuição do crédito do ponto de vista da afectação de recursos na economia – é consequência desse modelo, agravada, no caso da banca, pelo modelo de governação corporativa, importado das regras internacionais, também ele assente nos resultados de curtíssimo prazo. Na ausência de um mercado de capitais capaz de financiar o risco do investimento e de uma estratégia económica que vá além da utilização rápida dos fundos europeus, dificilmente se poderia esperar uma distribuição do crédito que, por si só, a suprisse.
A pandemia evidenciou os resultados da persistência nesta forma de governação. Mantê-la com vista a resolver temporariamente as dificuldades, ignorando as suas consequências profundas, não resolverá os problemas do Estado social e, pelo contrário, levará à sua falência. Um Estado social sólido supõe duas condições: uma economia forte e uma gestão eficaz por parte do Estado, das empresas e das famílias. O quadro institucional português não estabelece as condições necessárias para assegurar qualquer delas.
No que respeita à economia, a óptica curto-prazista a que as políticas económicas obedecem levou à estagnação da produtividade, ao mesmo tempo que a população envelhecia e que o número de trabalhadores no activo se reduzia. Estes são factores que directamente agravam o risco de falência do Estado social. A experiência de quatro décadas mostra que os fundos europeus, por mais generosos que sejam, não só não os corrigem, como temporariamente acomodam o seu agravamento. São os modelos e as práticas de governação, a nível sectorial e transversal, assim como as expectativas e os comportamentos que induzem na população, que têm de sofrer profundas alterações.
No plano institucional, o quadro que nos rege há décadas desvaloriza o “centro do governo”1, um órgão não partidário da administração pública, de apoio ao executivo no planeamento, coordenação e monitorização de uma acção governativa crescentemente complexa. A alternância política não dispensa a existência e continuidade de mecanismos de gestão que assegurem a interacção e coordenação coerente, na legislação e respectiva implementação, entre diferentes sectores cada vez mais especializados e com exigências específicas de gestão. A instituição de unidades com essa natureza caracteriza há muito os países democráticos e o seu desenvolvimento é objecto de contínua preocupação, também ao nível de instituições internacionais, com destaque para a OCDE. Entre nós, optou-se por uma gestão por silos, atribuindo-se ao Orçamento do Estado o exclusivo da coordenação da actividade governativa. Manteve-se desse modo a prática do antigo regime, embora com a diferença fundamental que consiste em a estratégia da governação ter passado a focar-se no aumento das despesas orçamentadas/comprometidas, optimizando a sua afectação em função dos ciclos eleitorais. A capacidade de as financiar apenas é tida em conta quando o excesso de endividamento leva à perda de acesso ao financiamento.
A crescente gravidade das crises que resultaram deste enquadramento é conhecida e nem os fundos europeus nem a moeda única puderam evitá-la. Porém, mais grave do que as crises de financiamento que já conhecemos é a deterioração da economia e da capacidade do Estado para efectivamente cumprir as responsabilidades que assume. Os problemas que a pandemia evidenciou nos sectores da saúde e da protecção social não são mais que a ponta do icebergue. Para evitar o naufrágio não basta proclamar o fim da austeridade e continuar a aumentar as despesas, os impostos e a dependência do financiamento europeu. Mas também não basta cortar despesas e baixar impostos. É necessária uma profunda reforma do quadro institucional e operacional que nos tem regido e que induz processos de decisão de que resultam estímulos que continuadamente enfraquecem a economia e o próprio Estado, esquecendo que um Estado fraco e financeiramente dependente é um luxo que só condições excepcionalmente favoráveis permitem manter. Por definição, estas esgotam-se. É, por isso, tempo de pensar o Orçamento do Estado por aquilo que é: um instrumento de gestão de curto prazo que, se não for integrado num quadro de gestão coerente, cria mais problemas do que resolve.
1 A que correspondem diferentes designações nos vários países: “Chancelaria”, “Executive Office”, “Secretaria-geral da Presidência”, etc.
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico