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21 de Junho de 2016 às 20:25

Um caso raro

Jo Cox foi eleita para o Parlamento do Reino Unido em 2015, pelo Partido Trabalhista, depois de uma vida de trabalho humanitário nos locais mais difíceis do mundo.

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Logo no início do mandato quis constituir uma comissão parlamentar para ajudar a resolver o problema do conflito na Síria. O primeiro passo foi falar com Andrew Mitchell, veterano deputado conservador, ministro para a ajuda internacional no anterior Governo de coligação dos tories com os democratas-liberais. Cox não iria a lado algum sem a experiência de Mitchell, que daria à ideia a credibilidade necessária para arregimentar o empenho de todos os partidos. Cox e Mitchell ficaram ambos a presidir à comissão e construíram a partir daí uma amizade célebre nos corredores de Westminster.

 

Esta é a história que melhor retive sobre o homicídio de Jo Cox. Porque é a história de uma espécie rara: num mundo em que a regra é o ódio ao adversário político, tínhamos ali alguém que respeitava a democracia como um processo de conversação útil ao bem geral. Ainda anteontem, nos Comuns, David Cameron lembrava que em 2006, recém-eleito líder dos Conservadores (e da oposição), quis conhecer o trabalho de uma organização humanitária em Darfur, inicialmente contra as dúvidas da própria organização, que suspeitava do alegado "oportunismo" da viagem. Quem acabou por impor a hospitalidade? Uma tal de Jo Cox. Cox era um soldado da moderação, das coligações positivas, e foi, portanto, naquela rua de Birstall, vítima de uma guerra na qual era apenas uma força de interposição. Isso, por si só, é uma tragédia em cima da tragédia.

 

Há uma tendência para associar a morte da deputada ao debate em torno do Brexit. Já vi até dizer-se que um adepto da saída do Reino Unido da União Europeia assassinou uma adepta da permanência. Talvez isso esteja factualmente correcto. No entanto, se a ideia não for contribuir para a histeria, convém ter maior cuidado. Enquanto o atirador de Orlando, por exemplo, se justificou com a interpretação de uma religião que de facto professa a punição dos homossexuais, sem que a meu ver tenha sido suficientemente isolado e descredibilizado por essa religião, a legitimidade da violência contra os adversários não tem qualquer presença séria no debate a propósito do referendo britânico, mesmo entre as ideias mais execráveis.

 

De qualquer modo, há um aspecto em que o assassino de Jo Cox não actuou "sozinho". O seu acto foi uma redução ao absurdo do ambiente político amargo e febril que se vive na Grã-Bretanha - e, em boa verdade, um pouco por todas as democracias ocidentais. Não me parece que haja alguém que possa ser totalmente absolvido do que aconteceu.

 

Jo Cox era uma presença contranatura na política. A política é uma actividade de exposição constante, que recomenda reservas consideráveis de confiança - uma ocupação confortável, em especial, para gente hipercompetitiva. O risco é o paradoxo que isso gera: quando devia ser, muitas vezes, a prática da modéstia, a gestão de possibilidades e consensos, a política é hoje, quase sempre, um exercício de vaidade, numa cultura de pura confrontação tribal, em que interessam as vitórias argumentativas a qualquer preço, mesmo que através da mentira, da linguagem tóxica ou da acusação de que os media estão enviesados. Tudo devidamente instigado pelas redes sociais, onde os responsáveis gostam de desabafar, livres do contrapeso do institucionalismo, instigados pelas hordas anónimas.

Políticos como Jo Cox são raros. Sê-lo-ão, agora, ainda mais.

 

Advogado

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