Opinião
A claque do árbitro
Para que a ordem liberal sobreviva, é necessário haver uma maioria que acredite inabalavelmente nos seus valores. Que acredite que a democracia, ou a ideia de que o Estado de direito não pode utilizar todos os meios para atingir os seus fins, valem por si só.
Imaginemos uma partida de futebol na qual, além das claques das equipas em confronto, encontramos um grupo que foi ao estádio para ser a claque do árbitro e das regras do jogo. Seria uma visão absurda. As regras e o árbitro são certamente indispensáveis, mas é suposto que as primeiras sejam incontestadas e que o segundo só seja criticado quando se ache que as não está a aplicar bem. Se chegássemos ao ponto em que as leis do jogo e o juiz da partida tinham de ser apoiados com a mesma organização e fanatismo tribal das claques, então é porque o jogo em si já estaria condenado.
Pensei nisto enquanto lia “O Crepúsculo da Democracia”, o último livro da historiadora Anne Applebaum, e “Portugal Na Era dos Homens Fortes”, o mais recente de Bernardo Pires de Lima. Há cada vez mais gente cuja “equipa” principal é a “ordem liberal”, e já não um dos lados propriamente ditos do espectro político. Applebaum e Pires de Lima, politicamente formados à direita, estão hoje mais preocupados em defender as regras do jogo – a democracia, o Estado de direito – do que em apoiar os “jogadores” do “seu” lado. Até porque muitos dos que se dizem desse lado (Trump, Orbán, Kaczynski, etc.) são uma ameaça àqueles valores. Na realidade, estão do outro lado do rectângulo de jogo.
Pergunto-me muitas vezes, porém, se é possível assegurar que as regras do jogo da ordem liberal sobrevivam eternamente, ou se não estarão elas ciclicamente destinadas ao fracasso.
Para me explicar, recuo no raciocínio. A principal questão com base na qual me defino politicamente é a seguinte: perante a mudança do mundo – que é constante e imprevisível –, qual a melhor forma de organizar a comunidade de modo que essa mudança seja o mais favorável e justa possível, sem destruir, de entre o que temos por adquirido, aquilo que permanece indispensável ao bem comum?
Dito de outra forma: como evitar que o instinto de familiaridade impeça os avanços para novos patamares de bem-estar, justiça e felicidade, e ao mesmo tempo evitar que o desejo de evolução traga mais perdas do que ganhos, destruindo os equilíbrios legítimos, já conhecidos, de bem-estar, justiça e felicidade?
Antes de mais, é uma questão de método e regras do jogo. Que valores, instituições e procedimentos devem estar permanentemente implementados para administrar a mudança num ambiente de paz?
As perguntas são “conservadoras”, a resposta é “liberal”. O único método possível é o do liberalismo (em sentido lato). Ou seja, o do pluralismo, da democracia, da liberdade de expressão, dos tribunais independentes, do parlamentarismo e da moderação, enquanto predisposição para a síntese dos antagonismos. Esse método, que permite a formação e o reconhecimento de maiorias sociais e políticas espontâneas, garante o progresso em paz por muito mais tempo do que qualquer outro.
No entanto, é óbvio que há o risco de o método liberal ser, a cada momento histórico, menos compreendido por quem faz parte das minorias “perdedoras”. E é inevitável que a partir de certo momento haja um número crescente de pessoas, à esquerda e à direita, com a sensação de que, por exemplo, a globalização cultural e económica, ou a tendencial neutralidade moral da lei, geram uma desordem insuportável, e de que o Estado e as suas instituições são uma ameaça aos valores tradicionais, herdados do passado.
Para que a ordem liberal sobreviva, é necessário haver uma maioria que acredite inabalavelmente nos seus valores. Que acredite que a democracia, ou a ideia de que o Estado de direito não pode utilizar todos os meios para atingir os seus fins, valem por si só. Que são bons para todos e que, mesmo quando perdemos uma batalha eleitoral ou ideológica, há nessa derrota, ainda, uma vitória civilizacional.
Posta a questão nestes termos, a ordem liberal acaba por ser também uma utopia, como as utopias de que nos quer salvar. Talvez os seus defensores, nos quais me incluo, tenham nos próximos tempos de se resignar àquela postura de claque do árbitro, assistindo da bancada, passiva e melancolicamente, às tragédias dos novos autoritarismos, até que dos escombros seja necessário reconstruir, pedra sobre pedra, o edifício da velha ordem.