Opinião
A guerra dos quarenta anos
Naquela meia hora de discurso o PP renasceu, Pablo Casado fez-se finalmente líder, e nós – os que partilhamos os seus valores e preocupações, e que estamos a seu lado na guerra dos quarenta anos – só nos podemos sentir representados e agradecidos.
No discurso de apresentação da moção de censura do Vox ao governo espanhol de Pedro Sánchez, Santiago Abascal declarou que aquele é o pior governo dos últimos oitenta anos. Pablo Casado, líder do Partido Popular, respondeu-lhe: esse governo dos socialistas com a esquerda radical é o pior governo dos últimos quarenta anos.
Abascal tinha dito que preferia a ditadura franquista ao governo de Sánchez. Com a sua correcção, Casado contrapôs que nenhum governo assente na actual Constituição democrática espanhola é pior do que o governo de um regime autoritário como o de Franco.
A provocação dos oitenta anos e a resposta dos quarenta foram os momentos mais simbólicos do debate. Nessa diferença de critério – quarenta anos – está representada a actual guerra civil da direita, entre os que defendem a direita da ordem liberal e os que a querem fazer regressar aos valores dos autoritarismos do século XX.
Não está em discussão a incompetência do Governo espanhol, que se vê na gestão da pandemia, nem o radicalismo das forças de que o PSOE está dependente, que também põem em causa as fronteiras ideológicas, os princípios institucionais e os equilíbrios regionais do regime constitucional. Não estão sequer em dúvida os tiques de um certo autoritarismo desesperado, de que é exemplo a vontade recente de Sánchez de impor um estado de emergência à Orbán, por seis meses, sem controlo parlamentar nem judicial. É óbvio que o governo de Madrid é péssimo sobre inúmeras perspectivas.
Mas Casado tinha um dever moral e histórico de ali, naquele momento, aproveitando a oportunidade que a moção do Vox lhe dava, lembrar qual é o perímetro do regime, e de por cima desse perímetro traçar uma linha divisória fundamental. O PP quer estar dentro do regime, o Vox quer estar fora dele. O lado do PP é o da direita democrática e pluralista, herdeira do pacto constitucional e da Transição, construída com esforço por Suárez, Fraga, Aznar e tantos outros. O lado do Vox, como Abascal confessou, é o da direita saudosista, que se quer vingar da Transição, rasgar a Constituição e impor uma História alternativa do pós-franquismo.
É pena que Pablo Casado tenha demorado dois anos a perceber isto. Foram dois anos em falso, a viver na ilusão de que é possível conter os extremistas sendo um pouco mais como eles, sem perceber a evidência de que ninguém se salva da morte mostrando-se disponível para o suicídio. Casado foi eleito líder num congresso em que se aproximou do programa de guerra cultural do Vox. O que conseguiu com isso foi apenas insinuar que o partido de Abascal é parecido com o PP, normalizando-o como concorrente do mesmo espaço político e justificando assim o seu crescimento. Se ao eleitorado é dito que dois partidos são basicamente iguais, o eleitorado tenderá a preferir o partido que fala mais alto.
A julgar pelo discurso contra a moção de censura, Casado aprendeu a lição. A sua recolocação no centro do pacto constitucional, enxotando com violência quem o ameaça à direita, dá-lhe força enquanto líder da oposição, porque lhe permite, com legitimidade intacta, exigir a Sánchez que também resista aos seus companheiros de governo, que ameaçam a democracia à esquerda.
Quanto a Santiago Abascal, soube bem vê-lo combalido e atarantado, a declarar-se “atingido” por um “ataque pessoal”, com a sua postura paramilitar subitamente artificial e ridícula. Os anos de desaforo e insultos contra a dita “direitinha cobarde” tiveram ali uma resposta contundente, na forma da coragem moral admirável que, por fim e pelo menos por uma vez, Casado mostrou.
Foi a melhor desconstrução da direita antiliberal que vi ser feita em muito tempo por um líder político. Com eloquência e uma precisão forense, Casado explicou por que razões o Vox é que é a verdadeira direita cobarde, com a sua crueldade ideológica, o seu radicalismo estéril, o seu medo em enfrentar o mundo moderno – e a sua vocação de derrota.
Naquela meia hora de discurso o PP renasceu, Pablo Casado fez-se finalmente líder, e nós – os que partilhamos os seus valores e preocupações, e que estamos a seu lado na guerra dos quarenta anos – só nos podemos sentir representados e agradecidos. Ainda precisaremos, e muito, dessa inspiração.