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Francisco Mendes da Silva - Advogado 07 de Outubro de 2020 às 09:40

Bazucas para os populistas

O actual PSD parece ter desistido de construir uma alternativa ao poder socialista. Pelos vistos prefere ser apenas um pajem subalterno, desde que, aqui e ali, possa ir recolhendo as esmolas desse mesmo poder.

Na próxima semana, os autarcas de todo o país, incluindo presidentes de Câmara, presidentes de Junta de Freguesia e membros das assembleias municipais, participarão no novo processo de eleição dos presidentes e vice-presidentes das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, aos quais caberá distribuir a "bazuca" financeira que em breve virá de Bruxelas. O PS e o PSD andam orgulhosíssimos da invenção, como se fosse uma forma de democracia superior às formas de democracia conhecidas até ao actual estádio de desenvolvimento da Civilização.

 

Acontece que, enquanto conquista democrática, esta eleição é uma farsa. Em primeiro lugar, porque os presidentes das CCDR e os seus vices, depois de eleitos, não responderão perante quem os elegeu. Responderão directamente, em exclusivo, perante o Governo. Era isso que acontecia até aqui; é isso que continuará a acontecer daqui em diante.  

 

A "eleição" tem apenas o objectivo de criar a ilusão de que os representantes do povo, de todos os partidos, participam no processo, quando na verdade tudo permanecerá basicamente na mesma. Será uma manifestação democrática instantânea, que acontecerá e se esgotará no momento da eleição. Ou seja, não haverá democracia alguma. Se o titular de um cargo é eleito mas não responde perante quem o elegeu, a sua eleição não serve realmente para nada.

 

Não acho que o modelo actual seja antidemocrático. As CCDR respondem perante o Governo, que tem a legitimidade da escolha popular. O que não é democrático é invocar a democracia em vão, só para enganar as pessoas, fingindo que se está a ouvir aos representantes locais do povo para, logo a seguir, deixar de os ter em conta.

 

Em segundo lugar, este processo é um passo a caminho da regionalização. Da última vez que se quis avançar nesse sentido, tudo foi feito às claras: foi realizado um referendo e houve um debate nacional, livre e bastante participado. Desta vez, optou-se por começar a impor a regionalização pela calada, passo a passo, num processo opaco acordado entre os dois maiores partidos.

 

Aliás, em terceiro lugar, a eleição é uma farsa porque os presidentes e os vice-presidentes das CCDR foram precisamente escolhidos por acordo entre o PS e o PSD, numa divisão de lugares entre os dois partidos. Portanto, em público, celebra-se o processo como impolutamente democrático. Em privado, assegura-se que ele está decidido à partida.

 

A estratégia é evidente: caminhar para a regionalização mas garantir que, quando lá chegarmos, o poder regional já está devidamente distribuído e instalado. Se isto é a democracia a funcionar, é uma "democracia" inquinada e subvertida, com aspas muito carregadas. E se é esta a regionalização que se deseja, então estamos conversados.   

 

Não surpreende que o plano venha do PS. A única ideia política coerente e permanente com que António Costa atravessou os tempos é a ideia de transformar o PS no centro hegemónico do poder, para determinar toda a vida económica e institucional do país. Vê-se isso todos os dias, com o afastamento de pessoas incómodas e a colocação de comissários políticos em tudo o que é instituição independente - do Banco de Portugal ao Tribunal de Contas, passando pelo Conselho Geral Independente da RTP. Costa não brinca em serviço. 

 

Que o PSD lhe estenda a mão, infelizmente não é também estranho. O actual PSD parece ter desistido de construir uma alternativa ao poder socialista. Pelos vistos prefere ser apenas um pajem subalterno, desde que, aqui e ali, possa ir recolhendo as esmolas desse mesmo poder.

 

Fala-se muito - e bem - da necessidade de combater os populistas. No entanto, quem o quiser fazer, deve ter sempre um primeiro cuidado: não lhes dar armas. A imagem que passa do processo de eleição dos líderes das CCDR é a de uma classe política complacente, habituada a confiar na nossa proverbial cultura de resignação e no nosso baixo grau de exigência democrática. Coisas como esta, ao serviço dos populistas, são uma autêntica bazuca. 

Advogado

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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