Opinião
Costa, o Habilidoso, volta a atacar
Em devido tempo, os portugueses perceberão que tudo não passou de uma ilusão, e que os seus salários e o seu rendimento disponível, afinal, não aumentaram. Entretanto, já terão votado nas autárquicas.
No início de “A Decadência da Mentira”, ensaio de Oscar Wilde em forma de diálogo socrático contra a arte realista, Vivian, um dos intervenientes, diz que pretende publicar um artigo precisamente com aquele título. Cyril, o seu interlocutor, exclama: “A mentira! Pensava que os nossos políticos mantinham esse hábito.” “Asseguro-lhe que não”, replica Vivian: os políticos “nunca se elevam para lá do nível da deturpação. Quão distantes estão do temperamento do verdadeiro mentiroso, com as suas declarações sinceras e destemidas, a sua irresponsabilidade soberba, o seu natural e saudável desdém pela necessidade de provar seja o que for!”
Presumamos, como Wilde, que a política não é a arte da mentira, propriamente dita, mas que é, ainda assim, um exercício de sublimação de meias-verdades, de dissimulação, desfiguração e adorno da realidade. Não admira que António Costa seja incensado como um príncipe na matéria, o modelo acabado do homem político. É extraordinária a naturalidade com que atravessa as polémicas dizendo as coisas mais arriscadas. Qualquer mortal veria a sua credibilidade arruinada; o primeiro-ministro, a julgar pelo aplauso pasmado de muitos comentadores, vê sempre a sua lendária “habilidade” ser dada por irremediavelmente demonstrada.
Não tenho aqui espaço para desfiar a lista dos melhores momentos do ilusionismo de António Costa. Mas nos últimos dias houve dois com nota artística. O primeiro foi quando justificou a não recondução do presidente do Tribunal de Contas com “um princípio de não renovação de mandatos”. Um princípio que não existe na lei, que não existe na história do tribunal, e que passou a existir apenas na cabeça de António Costa quando foi preciso inventar uma saída de emergência para esvaziar a celeuma que o caso tinha criado. A celeuma esvaziou-se, de facto, e o primeiro-ministro lá prosseguiu, de consciência incólume, o seu caminho.
O segundo momento foi quando António Costa conseguiu que o ciclo noticioso do último fim-de-semana fosse praticamente todo dedicado ao anúncio de que o Governo vai diminuir o IRS e aumentar os salários e o rendimento disponível, através da redução das taxas de retenção na fonte do imposto.
Aqui temos Costa vintage. O primeiro-ministro estava confrontado com um problema: por um lado, não conseguia dar boas notícias em matéria de impostos no Orçamento do Estado para o próximo ano; por outro lado, tinha mesmo de as dar, porque 2021 é ano de autárquicas. Solução? Anunciar uma redução de impostos que não é uma redução de impostos.
A retenção na fonte de IRS é um adiantamento que os contribuintes fazem ao Estado. É como que um empréstimo forçado e não remunerado. Depois do final do ano, feita a liquidação do imposto, a maioria recebe reembolso, o que mostra que o Estado vai recebendo sempre mais do que deveria receber. Por isso, claro, reduzir a retenção é uma boa medida: aproxima o valor que vamos entregando provisoriamente, ao longo do ano, do valor que efectivamente teremos em dívida.
Só que menos retenção não é menos IRS. É só mais dinheiro do lado de cá mais cedo. O que é bom, sem dúvida, mas não é nem mais salário nem mais rendimento disponível. Quando a retenção diminui, isso significa que, no final, ou pagaremos mais ou receberemos menos.
António Costa, bem sabendo disto, não se coibiu de aproveitar a iliteracia fiscal generalizada para anunciar que “iremos ter uma redução na fonte de forma a assegurar que todos os portugueses que vivem do seu salário vão ter maior rendimento disponível durante o ano de 2021”.
Será isto uma mentira pura e simples? Não. Mas também não é toda a verdade. A Costa faltou dizer que, depois de 2021, as contas serão acertadas. O tal “maior rendimento disponível durante o ano de 2021” trará menor rendimento disponível depois.
O importante é que a mensagem colou. Em tudo o que era manchete ou noticiário do fim-de-semana, a ideia foi sempre a mesma: o Governo vai mexer no IRS para aumentar os salários e o rendimento disponível.
Em devido tempo, os portugueses perceberão que tudo não passou de uma ilusão, e que os seus salários e o seu rendimento disponível, afinal, não aumentaram. Entretanto, já terão votado nas autárquicas.