Opinião
Um desperdício
A reivindicação de um novo estatuto dos juízes por parte da sua associação sindical poderia ser uma luta justa, em nome do bem comum, não se desse o caso de a associação ter cometido o erro fatal de ameaçar o Governo com uma greve absurda e ilegítima.
Não devem existir muitos casos tão evidentes de erro na afectação de recursos públicos por parte do Estado português quanto a subtracção da dra. Francisca Van Dunem ao Ministério Público e a sua alocação ao cargo de ministra da Justiça. O país perdeu temporariamente uma das suas mais competentes e reputadas magistradas, para ganhar uma ministra que, por muito preparada que esteja para a função, pouco pode fazer num Governo cativo das cativações do ministro das Finanças e do torpor anti-reformista do Partido Socialista.
O sistema de justiça tem hoje duas questões fundamentais, bem conhecidas: a morosidade processual, num mundo em que as relações sociais e económicas são cada vez mais céleres e dinâmicas, e um corpo de juízes com vocação e treino tendencialmente generalistas, num ambiente de crescente especialização das restantes profissões jurídicas.
Até ao momento, o melhor que a ministra fez (ou não fez) foi não ter revertido o essencial das reformas do anterior governo, quer ao nível das regras processuais quer no que toca ao mapa judiciário. São reformas que vão no sentido da maior qualidade do sistema, porque aceleram as tramitações dos processos e criam mais tribunais especializados, com jurisdição sobre uma parte maior do território.
O problema é que aquele ímpeto reformista ficou a meio. Depois da mudança nas regras de competência dos tribunais, era indispensável que, em conformidade, se alterasse o estatuto dos juízes. Não faz sentido existirem cada vez mais tribunais (supostamente) especializados quando aos próprios juízes não é garantida uma formação especializada adequada, nem regras de movimento que, durante os anos formativos da sua carreira, os impeçam de andar praticamente todos os anos a saltar de especialização em especialização. Assim como não faz sentido que as regras de organização dos tribunais estejam hoje construídas pressupondo um plano de carreira dos juízes que, em boa parte, o estatuto destes ainda não prevê.
A reivindicação de um novo estatuto dos juízes por parte da sua associação sindical poderia ser uma luta justa, em nome do bem comum, não se desse o caso de a associação ter cometido o erro fatal de ameaçar o Governo com uma greve absurda e ilegítima, provavelmente inconstitucional, que em qualquer observador razoável gera a convicção de que o que está em causa é apenas o tema da remuneração.
É pena: esta ameaça só reforça um Governo que nos assuntos fundamentais da justiça tem sido um deserto absoluto. Daqui a pouco estamos a meio do mandato e a única política visível que a ministra tem para apresentar é a "reabertura" de alguns "juízos de proximidade", responsáveis no último meio ano por uma média de dois julgamentos cada um (segundo dados oficiais). Um resultado que mostra que, se em alguns casos a medida fez sentido, em muitos outros não terá passado de mera cosmética eleitoralista.
É compreensível que a ministra da Justiça apenas tenha disponível, como arma política, aquela frase com que, reza a lenda, o ministro Vítor Gaspar terá um dia respondido ao colega Álvaro Santos Pereira: "Que parte de não há dinheiro é que não percebeu?" Mas se foi para uma simples intendência do quotidiano que foi chamada, e não para um reformismo sério, então mais valia ter-se atribuído o papel a um qualquer comissário político sem outra utilidade. Onde está hoje, a sra. procuradora-geral adjunta é um desperdício.
Advogado