Opinião
Teatro do absurdo
Em 1960, o crítico Martin Esslin cunhou a expressão "Teatro do Absurdo", para definir a obra de autores como Samuel Beckett, Jean Genet, Harold Pinter ou Eugène Ionesco, que devem a sua dramaturgia à mensagem existencialista de que a vida é desprovida de sentido.
No Sábado passado, o Presidente da República foi ao Teatro da Cornucópia protagonizar, também ele, um espectáculo aparentemente sem propósito, por momentos reduzindo ao absurdo o seu estilo de exercício do cargo e, por arrasto, a própria função presidencial.
O espectáculo foi filmado pela televisão, pormenor que evita aqui a necessidade de grande didascália. Enquanto os elementos da companhia se preparavam para a última representação da sua história, alegadamente cansados da crónica insuficiência de meios financeiros, Marcelo Rebelo de Sousa entrou em cena, com a sua proverbial bonomia, revelando que tinha estado na estreia da Cornucópia em 1973 e que não haveria de ser agora que esta fecharia portas. Pois não? Não se percebe se foi uma pergunta retórica ou temerária - Marcelo utilizou a ambiguidade típica dos grandes actores.
A conversa, à qual a boa gente da Cornucópia parece ter devotado a mesma simpatia de circunstância com que Isabel II recebeu o hiperactivo Marcelo em Buckingham, tinha entretanto "evoluído" para um rame-rame circular quando irrompeu o Ministro da Cultura, solícito mas aturdido com a emergência, dizendo que tinha cancelado a sua agenda do dia para poder ali estar. E ali esteve, de facto. Não se sabe é para quê. Presume-se que tenha sido obrigado por António Costa, que não se pode dar ao luxo de se afastar do brilho que irradia da super-popularidade de Marcelo.
Tudo indica que a intervenção do Presidente terminará em frustração, apropriadamente como nas repetidas e inconsequentes subidas da montanha de Sísifo, que Camus transformou em símbolo dos existencialistas. Do Governo não parece haver qualquer abertura para estatutos especiais e aumentos do financiamento público, e o próprio encenador Luís Miguel Cintra, agradecendo a preocupação, já veio dizer que o fim é irreversível.
De qualquer modo, independentemente do seu resultado, o esforço de Marcelo é, só por si, um exercício injustificado. É um desrespeito grosseiro pela separação de poderes e revela uma preocupante falta de critério no uso da palavra presidencial e na definição das prioridades políticas, num país com tanta falta de meios nos serviços públicos de primeira necessidade. Como se isso não bastasse, o Presidente conseguiu ainda ser acusado de mentiroso por Jorge Silva Melo, fundador da Cornucópia, que veio a público dizer que Marcelo não esteve na estreia de 1973. Como diz outra grande figura da arte do espectáculo, não havia necessidade.
A popularidade do Presidente da República é hoje um elo essencial do equilíbrio do regime. Com a actual crispação, só um Presidente respeitado assegurará uma reserva séria de representatividade se e quando todos os entendimentos falharem. Essa popularidade, que exige abrangência e simpatia, também depende de uma certa distância das questiúnculas do dia-a-dia político.
Não é preciso explicar a Marcelo que as regras constitucionais dos órgãos políticos servem para que o regime não fique dependente do estilo e temperamento de cada ocupante circunstancial. Mas é preciso que Marcelo perceba que, por muito que isso vá contra a sua natureza, a função de Presidente exige-lhe que aprenda o valor do silêncio. Pode começar por Samuel Beckett.
Advogado
Este artigo está em conformidade com o novo acordo ortográfico