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[731.] Renault Koleos

Uma das técnicas mais comuns na publicidade televisiva actual é a de montar uma narrativa sem palavras e com tempero musical. É o caso de mais um spot de Renault, desta vez de Koleos.

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Nota: Este artigo está acessível, nas primeiras horas, apenas para assinantes do Negócios Primeiro. 

 

A protagonista, uma noiva, aparece em primeiro plano. O pai aproxima-se dela. Abre-lhe a porta do carro. A rapariga está angustiada, vê-se na cara em grande plano mal se senta na traseira do carro. Lá vão pelo asfalto. O pai olha para trás. Percebe os "afectos" da moça. Carrega no botão 4WD e sai do asfalto, para um caminho de cabras numa floresta que não ardeu (o anúncio é estrangeiro).

 

Estaciona num istmo à beira dum rio. Conversam à beirinha, debruçados sobre as águas calmas. O pai passa-lhe a mão pelo pelo e dá-lhe um beijo. Ela, ainda angustiada, sorri. Se o anúncio tivesse o som do diálogo, saberíamos já o fim da narrativa, mas só dentro de 20 segundos o suspense será dissolvido.

 

Regressam ao asfalto, atravessando uma ponte e agora vamos atrás do Koleos para vermos a igreja rural ao fundo. O pai dá a mão à filha, ainda sentada atrás, detalhe que, resolvido o suspense, saberemos absurdo, mas, portantos, prontos! Sorriem.

 

O Koleos, por curiosidade, é o único carro junto da igreja. Supomos que todos os convidados vieram a pé - ou no autocarro da carreira. Mas ignoremos nisso. Notar as incongruências das narrativas é maldade minha. Elas são tão belas, para quê estragá-las com pensamentos lógicos?

 

Novo grande plano da noiva; está agora confiante, vê-se-lhe na cara. Respira fundo. Está pronta para o que se segue. Passamos para dentro da igreja. O pai abre a porta. Lá dentro, os convidados levantam-se. Grande momento este nos casamentos, o de ver a noiva, seu vestido e aparato. Mas o plano panorâmico, de dentro da igreja, de novo virado para a porta, mostra as cabeças dos convidados espreitando, e também o pai: não é que o Koleos se vai a pirar? Um contraplano mostra o pai, best supporting actor, olhando para a estrada, com sentido de dever cumprido: levou a moça à igreja mas, se ela não estava para ali virada, apoiou-a, quiçá incentivou-a a pirar-se no Koleos. Quiçá, nada!, pois ele ainda faz, antes de desaparecer de cena, um movimento de cabeça, que é um como quem diz, um eu aprovo isto.

 

De novo no caminho que leva a igreja, o Koleos avança confiante. Só podia: ao volante, a noiva tira o véu, símbolo da antiga virgindade que só no casamento se destapava, lança-o pela janela e ri, mas de boca fechada, porque não é vingativa, foi apenas uma decisão muito pessoal.

 

E a narrativa termina com uma panorâmica no mesmo local, a igreja ao fundo e o Koleos afastando-se. Finalmente, o texto: "Novo Renault Koleos. Take the alternative road".

 

Fiquei preso ao storytelling. Quero saber mais! Então e o noivo? É que nem o vimos, coitado. Imagino a tristeza, o vexame. Mas, quem sabe, era uma besta. Nunca saberemos. E os convidados? Estarão furiosos, depois da despesa com as roupinhas, depois da viagem a pé ou na carreira até à igreja, e na dúvida se haverá, mesmo assim, o copo-de-água, para compensar? E a mãe da noiva? Já tinha morrido? Estaria já na igreja? Coitada, com o coração destroçado pela certa.

 

Anúncios como este, montando a narrativa num minuto ou menos, são uma oportunidade para os publicitários mostrarem o seu virtuosismo técnico. Este spot é perfeito, e só a minha lógica maldosa lhe encontra incongruências - com o único objectivo de mostrar aos leitores como as narrativas conquistam os espectadores e os deixam cegos com o que vêem.

 

Disse-se que este, como outros anúncios de agora, amachucam a instituição do casamento. É o que parece. Mas os publicitários o que tiveram de inventar foi uma narrativa que associasse o Koleos ao "vá por uma estrada alternativa", quer dizer: mude de ideias, não compre esse carro da concorrência, compre este Renault. O storytelling fica muito bonito e virtuoso, mas os anúncios assim quase não falam dos produtos, não destacam qualidades, descentram a atenção para a narrativa. Eu tive de andar à procura deste na box, porque, depois de o ver duas vezes, não me lembrava nem da marca nem do modelo.

             

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