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24 de Maio de 2015 às 19:20

Objecto capitalista não identificado

O maior investidor na Altice é o seu presidente, Patrick Drahi, o 57º homem mais rico do mundo segundo a Forbes. Não podíamos estar mais longe do "fund raising" de uma "private equity firm".

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"It's a bird! It's a plane! No, It's superman". Este conjunto de exclamações foi frequentemente atribuído pelo argumentista Jerry Siegel aos habitantes da cidade ficcional de Metropolis, como reacção aos sobrevoos pujantes de Clark Kent, jornalista do também ficcional Daily Planet e nascido Kal-El no igualmente ficcional Planeta Krypton. Ainda bebé, Kal-El foi enviado para a Terra por seu pai Jor-El para escapar à iminente destruição do seu planeta natal, que o pai El antecipara mas que os políticos kryptonianos entenderam, erradamente, ignorar. A série é de 1933 e o nome da cidade palco das aventuras de Clark Kent foi uma homenagem de Siegel e do desenhador Joe Shuster, ambos cinéfilos militantes, ao filme homónimo de Fritz Lang. Superman, criado no Kansas rural por um casal infértil e já maduro em cujo "backyard" o acaso fez a nave de Kal-El aterrar, era um corpo estranho na Terra, onde não havia memória de ninguém como ele.

 

Às vezes a história repete-se, e na milenar cidade de Lisboa tem-se ouvido os habitantes exclamar "É um operador! É um fundo! Não, é a Altice" em reacção aos sobrevoos, também pujantes, da dita Altice sobre a presa que tomou aos brasileiros da Oi, a empresa que hoje dá pelo nome de PT Portugal, curiosa razão social que repete o nome da Pátria, primeiro abreviado e depois por extenso. Ao contrário dos Metropolisianos, que, feitos inteligentes por Siegel, concluíam rapidamente que estavam perante o Super-Homem e não perante um pássaro ou um avião, muitos lisboetas insistem que a Altice é um fundo, um fundo chamado Altice. Muito poucos concluem tratar-se de um operador, apesar de não terem dúvidas de que a PT Portugal é um operador. Explicam este aparente paradoxo comparando com a Vodafone, que definem como um operador multinacional, por ter "uma marca, uma orientação estratégica, uma filosofia que é transversal a vários mercados" (a citação é de Miguel Almeida, presidente da Nos, em declarações ao Expresso, o jornal e não uma bebida estimulante produzida pela passagem, sob alta pressão, de água quente por café moído). Curiosamente, a simples aplicação desta noção à Portugal Telecom levaria a concluir que a PT não é um operador, nomeadamente por não ter, por exemplo, usado a sua marca no Brasil ou em Angola.

 

Curiosidades à parte, esta dissonância de opiniões é interessante porque a Altice pode ser muita coisa - por exemplo um objecto capitalista não identificado - e não ser uma série de coisas, mas não é certamente um fundo. Para começar, os fundos não são sociedades, e a Altice é uma sociedade aberta, cotada desde Janeiro de 2014 na Euronext Amsterdam. Este detalhe não é um pormenor; Michael Jensen, reputado professor da Universidade de Harvard, publicou em 1989 na Harvard Business Review o artigo seminal "Eclipse of the Public Corporation", onde defendia que a sociedade aberta, até então o maior motor de progresso nos Estados Unidos, se iria eclipsar em vários sectores, em favor de uma forma de organização alternativa - os fundos de "private equity". Estas estruturas assentam em bases contratuais, não recorrem aos mercados públicos de acções e portanto não têm um leque de accionistas minoritários passivos, o dito "free float". Pelo contrário, levantam capital em mercados privados junto de investidores sofisticados aos quais se obrigam a devolver capital (desejavelmente aumentado) ao fim do período contratualmente fixado. Efectuada a devolução, o fundo extingue-se e o seu promotor, uma "private equity firm", repete o exercício e levanta um novo fundo, desejavelmente invocando os sucessos do anterior (uma máxima consensual na indústria é "two bad funds and you are out"). Ora o maior investidor na Altice é o seu presidente, Patrick Drahi, o 57º homem mais rico do mundo segundo a Forbes. Não podíamos estar mais longe do "fund raising" de uma "private equity firm". A repetida qualificação da Altice como um "fundo" deve-se, salvo melhor opinião, à filosofia que presidiu à estratégia de crescimento da empresa, descrita com rasgo pela Forbes como "a buy-low, sell-high mantra" que Drahi "y sus muchachos" aplicaram com convicção religiosa às cerca de 20 aquisições que a Altice fez desde 2003. Tal como o Superman no Kansas, também não há nada igual em Lisboa. Ou melhor, não havia. O objecto capitalista não identificado está a aterrar.

 

Professor Associado, IBS

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