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19 de Outubro de 2016 às 19:32

Malvada vida regrada

João das Regras, Professor e Reitor da Universidade de Lisboa na transição para o século XV, tem um lugar dourado na História de Portugal.

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Nas Cortes de Coimbra, em 1385, argumentou destramente em favor da vacatura do trono de Portugal, desconsiderando habilmente as pretensões de D. Beatriz, filha do falecido rei D. Fernando e casada com o rei de Castela, primo de seu pai, e dos infantes D. Dinis e D. João, filhos, porventura ilegítimos, do rei D. Pedro e de Dona Inês de Castro. Demonstrada a vacatura do trono, as Cortes puderam eleger o Mestre de Avis, fundador da dinastia homónima e filho bastardo de D. Pedro. Apesar do seu prestigiado nome, o Doutor João das Regras fez, com o brilhantismo da sua argumentação, valer um princípio - a independência nacional e a vontade dos portugueses - sobre as regras que outros, menos hábeis, entendiam consagrar a entronização de D. Beatriz ou do meio-irmão homónimo daquele que veio a ser conhecido como "O de Boa Memória".

 

Apesar dos bons resultados então obtidos com o primado dos princípios sobre as regras, a República Portuguesa que sucedeu ao Reino de Portugal nos primórdios do século XX preferiu basear a reforma da legislação do mercado de capitais numa opção clara pela chamada "rule-based regulation", da qual resultou o algo monumental Código do Mercado de Valores Mobiliários, também designado Lei Sapateiro em honra do seu autor, e sobre cuja publicação passaram recentemente 25 anos. Esta opção, cara aos americanos como demonstrada pelas 2.319 páginas da Lei Dodd-Frank com que reformaram o seu mercado de capitais em 2010, podia ter sido diferente e ter recaído na "principles-based regulation" preferida pelos britânicos e pela sua FSA. Tentando simplificar, a "principles-based regulation" acentua as finalidades do processo regulatório - o regulador é claro quanto ao que quer - deixando aos regulados as tarefas de decidir o que têm de fazer para preencher esses requisitos e de documentar ao regulador que o fizeram a contento, um processo que a literatura designa "reverse engineering".

 

Pelo contrário, a "rule-based regulation" de que a Lei Sapateiro e suas sucessivas alterações veio a ser o veículo nacional, especifica detalhadamente o que os regulados - todos e cada um - devem fazer, no pressuposto implícito de que a imposição de tais acções leva ao alcance de objectivos regulatórios, frequentemente por explicitar. Nesta alternativa, é ao regulador que cabe o chamado "forward engineering", ou seja, garantir que aquilo que obriga os regulados é fazer o que é necessário e conveniente para cumprir os objectivos do processo regulatório. Há quem defenda que a "rule-based regulation" é laxista e a "principle-based regulation", rigorosa, logo superior, o que dificilmente se pode conceder se olharmos ao facto de o mercado financeiro americano ter estado na origem da hoje chamada Grande Recessão. É certo, e natural, que a "principle-based regulation" é mais cómoda para o regulado - pelo menos para o que tem uma visão sobre o mundo que o rodeia - e que, no Reino Unido, se olhava com preocupação para a regulação do mercado de capitais da União Europeia, claramente "rule-based". Em Portugal parece que, como em tempos gostaram do POC, todos gostam da vida regrada no mercado de capitais. Felizmente, em 1385 havia o Doutor João das Regras.

 

Professor Associado, IBS

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